segunda-feira, 29 de junho de 2020

Lições deste tempo: o toque



“O tato é, porventura, o mais visceral, primário e delicado dos sentidos. Ele nos ensina o que permanece na pele, mas também quanto cabe (e cabe o universo) na ressonância de um simples toque. O tato é indelével e é concreto; é uma fronteira do corpo e um seu limiar; é anônimo e ardentemente singular; é pontual e conciso, mas a sua duração em nós é, não raro, incalculável.”

(José Tolentino de Mendonça)

Naquela tarde, tinha ido ao centro da cidade para um compromisso. Subindo os degraus do adro da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, detive-me um instante. Não poderia apenas passar por ali. As portas abertas me convidavam a entrar. Foi o que fiz. Lá dentro, o bom silêncio, entrecortado apenas por um ou outro barulho externo. Era fim de tarde, os carros e as motos seguiam apressados seu destino, mas dentro de mim tudo se passava lentamente. E, lentamente, crescia um mistério. Sentia-me como que “sócia” de Deus: acabara de descobrir que estava grávida. 

Lembro que, ao sair, recostei-me à porta principal e, erguendo o olhar para o alto, para a copa das árvores da pracinha ali em frente, para o céu ali acima, pensei por um momento estar mesmo mergulhada num grande milagre: uma vida a crescer dentro de outra vida, uma vida a esperar outra vida... Nada a fazer senão cuidar de mim para que aquela vida fosse cuidada, mas a mão que a moldaria trabalharia por si. Quanto a mim, caberia esperar. Esperar e imaginar cada particularidade daquele bebê: como seriam suas mãozinhas, seus pequenos pés, seus olhos, a textura de sua pele, seu cheiro... Uma espera carregada do desejo de ver e tocar.

Essa lembrança ocorreu-me hoje cedo, despertada que fui pelo meu filho, às quatro e meia da madrugada. Ele se achegou de mansinho e foi se aninhando embaixo do lençol, até adormecer de novo, quietinho, envolto em meu abraço e nos cheiros que lhe dava nos cabelos – devia existir um jeito de colocar esse perfume dos cabelos das crianças num frasco destinado aos instantes de saudade, depois que elas crescem.

Há quase uma semana ele estava adoentado, não sabíamos de início de que se tratava. Os sintomas indicavam uma arbovirose, mas nesse contexto de pandemia de covid-19, qualquer sintoma pode ser suspeito. Por precaução, o pediatra orientara distanciar-me de meu pequeno, já que estou num dos grupos de risco. Claro que minha vontade era ficar perto de meu filho, colocá-lo debaixo da asa, como se diz, cobri-lo de carinhos para ajudar a passar o dodói. Porém foram necessários alguns dias até sabermos que realmente era uma das viroses transmitidas pelo aedes aegypti. Nesses dias, não pudemos nos aproximar. Beijar com ou sem estalos nas bochechas e no cangote, abraçar apertado ou de leve, afundar o nariz nas ondas dos cabelos, falar pertinho, acariciar, enfim, toda forma de contato estava fora de cogitação. Sob o mesmo teto, distantes fisicamente, mas unidos no olhar e no coração.

E não seria essa a união verdadeira, a que está para além das fronteiras físicas? Sim, creio que sim, no entanto uma das lições desses tempos hodiernos é a de que necessitamos do contato físico com as pessoas. Faz falta o toque, o aperto de mão, o abraço apertado, o reunir-se com a família e os amigos, sem máscaras... Faz falta estar perto, estender a mão e saber que existe a possibilidade de tocar o outro, sem que isso soe uma ameaça... E não há telefonema, chamada de vídeo, live, saudação de cotovelo que resolva. Nosso maior desejo é a comunhão, e comunhão não se faz na ausência, mas na presença total do outro.

Talvez houvesse entre nós, ou em nós, muitos desprezadores do corpo, muitos banalizadores do corpo. Habituados demais ao corpo, tão habituados, talvez muitos de nós não dávamos pela sacralidade do corpo. Talvez estivéssemos mesmo ausentes de nosso próprio corpo... Como era mesmo que nos tocávamos, como abraçávamos, como olhávamos o outro, como lhe estendíamos a mão?

Agora, quando andamos pelos lugares, preocupamo-nos em manter distância das pessoas, e olhamo-nos por trás das máscaras, apenas os olhos a se cruzarem, ora sorridentes, ora sérios, temerosos e carregados de esperança... Todos, mesmo os mais chegados, de repente podem nos parecer estranhos, algozes e vítimas ao mesmo tempo, e é tão estranho...

Talvez estivéssemos mesmo precisando aprender a tocar as almas, antes de tocar os corpos. Estender os braços de nosso amor em sacrifício para tentar alcançar aquela terra pouco explorada no coração do outro, como se tivéssemos dedos de brisa, pés de algodão, e fosse quase uma audácia pedir licença para ali permanecer. O outro será sempre um mistério sagrado, que não se pode tocar sem se comprometer. Por isso a necessidade do cuidado, da delicadeza, da cortesia no tocar, no olhar, no falar...

Talvez estivéssemos mesmo carentes de toques verdadeiros, de olhares que vissem para além da superfície e ousassem chegar ao território de nossas almas, sequiosas de comunhão fraterna. Queira Deus – queiramos nós! – que aprendamos a lição.



Kalliane Amorim

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