"Desamor,
indiferença, nunca serão capazes de gerar poder suficiente, de demorar-se
atentamente sobre um objeto, segurar e esculpir cada detalhe e particularidade
nele, por mínimos que sejam. Apenas o amor é capaz de ser esteticamente
produtivo; apenas em correlação com o amado é possível a multiplicidade
plena."
(Mikhail Bakhtin)
O
amor nasce e cresce da apreciação do ser ou objeto amado, e, creio eu, ninguém
consegue apreciar as particularidades do que quer que seja se não se permitir
parar e ligar as antenas dos sentidos, a fim de captar sua beleza, sua
singularidade, sua essência. Para amar é preciso conhecer, e conhecer requer
algo que desde criança fazemos: experimentar. O amor, longe de ser uma
abstração, é uma experiência, é empírico. Não é à toa que as palavras saber e
sabor têm a mesma raiz.
No entanto, não basta experimentar e conhecer para
amar, é necessário haver em nós uma certa disposição, um esforço -
esforçai-vos, diz Cristo - em tornar contínuo esse proceder, pois aquele/aquilo que amamos ganha novas formas, contornos e jeitos à medida que o tempo
passa. Não podemos pensar que já conhecemos, experimentamos e amamos o
suficiente, porque o amor não se esgota, há sempre algo a ser descoberto,
observado, apreciado...
Ah, pobres de nós que, amordaçados pelo hábito,
deixamos de cantar a novidade do trivial, do rotineiro, do comum... A nossa
súplica deveria ser pela eterna novidade de tudo que nos é familiar, pela
surpresa e encantamento de tudo que nos é corriqueiro. Como nossa casa, os
espaços e objetos que a compõem, as pessoas que dividem a vida conosco, os
animais domésticos que se integram à família e os bichinhos que, pacificamente
ou não, vêm nos visitar de vez em quando.
Quando começaram os anúncios da
necessidade de isolamento social em razão do coronavírus, vi muita gente
reclamando da "angústia" de ter que permanecer em casa, isso para
quem não estava, por necessidade, tendo que sair para trabalhar ou labutar em
busca de um emprego, ou, drasticamente, para quem sequer tinha uma casa onde se
abrigar. A casa passou a incomodar, a ser um ambiente hostil, uma prisão...
Será?
Será que tantas saídas, passeios, ausências, não eram já, na verdade, uma
fuga de si mesmo? Será que, na verdade, não era a casa que incomodava, mas o
fato de que o indivíduo estava se vendo forçadamente a permanecer consigo,
debaixo do próprio teto, em vez de se dispersar por aí? Quando não estamos bem
conosco, quando não estamos minimamente encontrados em nós mesmos, nada
satisfaz, nenhum ambiente agrada, ficamos inquietos, buscando, buscando,
buscando... O quê? Certeza? Verdade? Paz?
É preciso arrumar a casa interior
para apreciar a casa exterior. Esta é uma extensão daquela. Não se pode amar
uma e desprezar a outra. Mas isso às vezes leva tempo, porque na verdade somos
muito lentos para determinadas coisas. Temos pressa de cumprir tarefas, fazer
negócios, ocupar o tempo com mil e uma coisas extremamente urgentes e
necessárias, e terminamos a jornada do dia lamentando por ele não ter mais horas. Não ouvimos os
avisos interiores de que precisamos virar o leme e buscar outra rota para nossa
viagem nesse mundo, e vamos empurrando a vida de qualquer jeito, até que uma
ameaça invisível nos põe contra o muro de nossas certezas inabaláveis e ordena:
Pare!!! Pare e olhe à sua volta, pare e olhe dentro de você! Há duas casas para
cuidar. Aliás, há uma casa só, porque uma é o espelho da outra.
É preciso
passar a vassoura, tirar o pó acumulado, passar lustra-móveis, reorganizar
gavetas e armários, pôr o lixo fora, podar as plantas, arrancar as ervas
daninhas. É preciso ordenar tudo. Depois sentar e apreciar o resultado do
trabalho, e a cada dia se dispor a realizar e a aperfeiçoar as mesmas tarefas.
Sempre aparece uma novidade em meio à faxina, mesmo que os móveis e os objetos
sejam os mesmos e ocupem exatamente os mesmos lugares.
Haverá dias em que,
concentrados em tarefas corriqueiras, como dobrar os lençóis da cama, partir o
pão, abrir a torneira do chuveiro, recolher os brinquedos dos filhos pela casa
ou desligar todas as luzes, olharemos espantados para nossas mãos e, surpresos,
pensaremos como terá sido possível não reparar bem nelas, no quanto trabalham,
no quanto podem cuidar dos detalhes, no quanto se movimentam harmonicamente
para construir, com gestos, a estrutura de nossa casa. E perceberemos que essa
construção nunca é solitária, mas sempre solidária.
Haverá dias em que nos
demoraremos atentamente sobre nossas moradas - nosso ser, nossa casa, nossa
rua, nosso mundo -, sobre os objetos, as plantas, os bichos, as pessoas, as
situações, e aprenderemos a amá-los no que são, sem cobranças, sem acusações. Aprenderemos a amar aceitando e nos doando.
Haverá dias em que um abrir de olhos, uma fresta de janela, um cheiro de pão assado, um choro de criança, uma canção ouvida ao longe, um nadinha de nada arrancará sorrisos e algumas lágrimas. Estaremos vivos, e em nossas casas.
Haverá dias em que, aprendizes
incansáveis, não deixaremos minguar a esperança de dias assim.
Kalliane Amorim.
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