sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Sobre pastores na poesia


Aproveitando o convite de meu amigo Clauder para colaborar com o espaço Jornalista Martins de Vasconcelos, no Jornal De Fato, compartilho com vocês o texto que escrevi para a edição de 27 de setembro - depois de um período de férias justas e merecidas! Boa leitura!

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Nas aulas de literatura com meus alunos de Ensino Médio, insisto na compreensão de que não importa tanto o que se diz, mas sim a maneira como se diz o que se diz. Ao enfatizar isso, não faço outra coisa senão repetir, bakhtinianamente falando, o discurso de muitos que me antecederam. Na linguagem, tudo é velho e novo ao mesmo tempo: retomamos as falas, literalmente ou não, das pessoas com quem conversamos, dos livros que lemos, das histórias anônimas que ouvimos ao longo da vida, porém, a cada momento, tudo isso que já foi dito se reveste da novidade do instante, do exato momento em que tornamos concreto o nosso pensamento, por meio da palavra.

Em se tratando do discurso literário, como dizer parece ser a essência que define a qualidade do texto, uma vez que a escolha de uma determinada palavra, a posição desta no enunciado, a sua carga semântica e sua sonoridade contribuem para fazer emergir a beleza estética, diante da qual os leitores podem vivenciar até mesmo experiências epifânicas. Quantas vezes ao pousar os olhos nas páginas de escrita literária não nos emocionamos e encontramos a nós mesmos, como se quem escreveu aquilo ali estivesse desnudando nossa alma aos nossos próprios olhos?

Além dessa necessidade de enfatizar a forma do texto, é muito pertinente que possamos realizar uma leitura mais profunda, estabelecendo as ligações entre os discursos e os textos, num movimento dialógico que revela a dinâmica da linguagem. O que alguém diz no passado não fica lá, estático, congelado, engessado. Pode reviver de outras maneiras no que um outro alguém diz no presente. Para ilustrar um pouco dessa dinâmica, escolhi tratar de uma figura constante na poesia lírica: o pastor.

As Sagradas Escrituras, que começaram a ser registradas por volta de 1250 a.C - levemos em conta que as narrativas orais já vinham se estendendo por muitos séculos antes de serem escritas - já apontam para a figura do pastor no próprio Gênesis, quando apresentam a figura de Abel, que era pastor, diferentemente de Caim, que era agricultor, primeiros exemplos de relação do homem com Deus após a expulsão de Adão e Eva do paraíso. Ainda no mesmo livro, Deus aparece a Abrão e lhe ordena a sair da cidade de Ur, na região da Mesopotâmia, em direção a uma terra desconhecida. Ele obedece ao Senhor num ato que eu diria de extrema coragem e confiança em Deus, uma vez que naquela região todos os povos eram politeístas. Sai Abrão com sua esposa e seus familiares, montando acampamentos ao longo do caminho. Porém, quando enfrentam uma seca e começam a passar fome, descem ao Egito, e lá o faraó o presenteia com vários animais, entre os quais estão ovelhas. Isaac, seu filho, se torna pai de Esaú, o caçador, e Jacó, o 
Resultado de imagem para jesus o bom pastorpastor, que vai aumentar consideravelmente o rebanho do que viria a se tornar o povo de Deus, os israelitas, descendentes de Jacó.
O pastoreio era uma atividade típica desse povo, aos pastores cabia cuidar do rebanho, reconhecer as ovelhas uma por uma, evitar sua dispersão nos campos, desenvolver uma linguagem própria para se comunicar com elas e dar a sua vida para salvá-las, uma vez que constituíam um bem precioso para o patrão. A carga simbólica da figura do pastor é tamanha, que no livro dos Salmos é associada a Deus - o Senhor é o meu pastor (Sl 23) -, e nos Evangelhos, a Cristo - eu sou o bom pastor, conheço as minhas ovelhas e as minhas ovelhas conhecem a mim (Jo 10).

Trazendo essa imagem para a construção do texto poético, em diferentes épocas, diferentes autores compuseram poemas, de cunho religioso ou não, agregando novos sentidos àqueles já existentes. A poesia mística de São João da Cruz, que viveu na Espanha renascentista, está repleta de construções metafóricas, numa simbologia que o fez subir ao posto de maior poeta lírico de língua espanhola. São dele os seguintes versos com referências à figura do pastor, intitulados “Canções ao Divino Cristo e à Alma”:


Um Pastorinho, só, está penando,
Privado de prazer e de contento,
Posto na pastorinha o pensamento,
Seu peito de amor ferido, pranteando.


Não chora por tê-lo o amor chagado,
Que não lhe dói o ver-se assim dorido,
Embora o coração esteja ferido,
Mas chora por pensar que é olvidado.


Que só o pensar que está esquecido
Por sua bela pastora, é dor tamanha,
Que se deixa maltratar em terra estranha,
Seu peito por amor muito dolorido.


E disse o Pastorinho: Ai, desditado!
De quem de meu amor se faz ausente
E não quer gozar de mim presente!
Seu peito por amor tão magoado!


Passado tempo em árvore subido
Ali seus belos braços alargou
E preso a eles o Pastor se ficou,
E seu peito por amor muito dolorido!


O título dado ao poema é a chave de sua interpretação, pois delimita o campo semântico para a compreensão dos versos. Neles, percebemos a queixa do Pastorinho, que é Cristo, ao se sentir esquecido por sua pastora, a alma. São João da Cruz faz um resumo do que foi o sacrifício da cruz, expresso na última estrofe do poema, pelo fato de haver sido olvidado daquela por quem dá a sua vida, a alma humana.

Imagem relacionadaNa literatura moderna, a professora e escritora Cecília Meireles também se valeu da imagem do pastor para compor seu poema “Destino”, no livro Viagem (Nova Fronteira, 2001), sua primeira grande obra poética. Nesse poema, a autora contrapõe os pastores da terra, isto é, as pessoas apegadas à própria existência e repletas de certezas sobre a vida, à pastora de nuvens, que seria ela mesma, aquela que, diante da efemeridade da vida e da criação, só pode viver mesmo nesse universo suspenso, metafísico, território do espírito. Dele, transcrevo as seguintes estrofes:


Pastora de nuvens, por muito que espere,
não há quem me explique meu vário rebanho.
Perdida atrás dele na planície aérea,
não sei se o conduzo, não sei se o acompanho.


(Pastores da terra, que saltais abismos,
nunca entendereis a minha condição.
Pensai que há firmezas, pensai que há limites.
Eu, não.)


Cecília, em sua poesia intrinsecamente aérea e evanescente - em relação às imagens que refletem sua própria alma, dada à espiritualidade -, propõe uma pausa para pensarmos sobre o tipo de pastoreio que estamos exercendo na vida: pastoreamos somente o que é matéria ou cuidamos em pastorear, também, e nessa mesma matéria, o que é expressão do espírito?

Anchella Monte, poetisa cearense de nascença e potiguar de vivência, fazendo uma espécie de contradiscurso em relação ao poema de Cecília, traz a nós essa pequenina joia, “Pastoreio”, em seu livro Temas roubados (Sebo Vermelho, 2006):


Não sou pastora nem fui
Mas pastoreio meus sonhos
Não deixo que andem alto
Não quero que sigam longe.


Não sou pastora nem fui
Mas a mim me pastoreio
Pois quero fugir de mim
A imagem pode conter: 1 pessoaE me perder eu receio.


Não sou pastora nem fui
Mas pastoreio meus passos
Da loucura ando perto
À loucura dou os braços.


Não sou pastora nem fui
Mas assim melhor eu vejo
Cada sonho e cada fato
Mais revelam meu desejo.


Não sou pastora nem fui
E pastoreio assim mesmo
Sei que arriscado seria
Realizar o meu desejo.


Não sou pastora nem fui
Meu sonho é meu pesadelo
Deixar de sonhar não posso
Também não posso vivê-lo.


Não sou pastora nem fui
Mas pastoreio escondida
Não posso abrigar o lobo
Pelo qual me acho perdida.


Nesse poema, as contradições da alma humana e a necessidade de uma observação mais atenta de si mesma pelo eu lírico marcadamente feminino são as temáticas mais explícitas. Para quem conhece o poema de Cecília, o diálogo se estabelece claramente: se lá a tensão se dá entre matéria e espírito, aqui, a tensão acontece entre o desejo e a interdição.

Nos três textos selecionados, vemos não apenas a preocupação com a forma - todos os autores se preocuparam com as questões formais próprias da linguagem poética, como métrica e rima -, mas também com a mensagem a ser construída a partir dessa figura do pastor, como aquele que cuida de um rebanho muito particular: a alma, a vida e os desejos. Possamos nós, enquanto leitores, adentrar mais no âmbito simbólico da linguagem poética, a fim de compreendermos, também, a nós mesmos.



Kalliane Amorim

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Sobre o mundo maravilhoso de Marina Colasanti

E nessa conversa sobre coisas que só amantes de livros fazem, como eu já suspeitara, esqueci-me de mencionar que todo amante de livros faz de tudo para ver de perto os autores que ama, falar com eles, dar-lhes um abraço, quando isso é possível, e tirar uma foto para guardar de lembrança, além de garantir aquela dedicatória que fará parte de seu arquivo de afetos e poderá, depois, se tornar até mesmo uma relíquia. Isso tudo, claro, quando os escritores ainda não se tenham transformado completamente em livros. 

Em agosto de 2015, empreendi uma autêntica odisseia de Mossoró à praia de Pipa, no litoral sul do Rio Grande do Norte, para ver de perto uma de minhas escritoras favoritas: Marina Colasanti. A história começou no mês anterior, quando um aluno meu, sabendo de minha admiração pela escrita imaginativa e poética dessa mulher, enviou-me o link da programação da Flipipa, a Feira Literária de Pipa, que já deve estar indo para o seu oitavo ano de realização. Seria numa sexta-feira, às oito horas da noite, o bate-papo literário com ela, na tenda dos autores. 

Imediatamente cuidei em arquitetar um jeito de ir, mas não sozinha; tinha que, obviamente, conclamar outros amantes de livros para ir também, além de pensar em toda a logística que envolveria a viagem, já que meu filho estava com dois aninhos de idade apenas, e eu não poderia levá-lo, precisava contar com o companheirismo e a compreensão do papai, que, felizmente, entende bem esse meu lado fanático por literatura e é um paizão pra todas as horas. Lembrei de meu amigo Davi, outro admirador da obra de Marina, e o convidei. Ele passou a mensagem para Janaína e Cleide, que entraram em contato com Flávia e Meire. Era a caravana dos letrados: todos das Letras, egressos da UERN. Mas, tal qual a história, éramos seis. Passamos para cinco, porque Davi desistira de nos acompanhar - Marina Colasanti veio, ano passado, a Natal, e Davi perdeu de novo a oportunidade de vê-la, o que me faz desconfiar de seu título de amante de livros! Enfim, a amiga Janaína, que é uma agenciadora de viagens das melhores, cuidou em reservar pousada e nos passar os horários e valores das passagens.

Às sete horas da manhã do dia 7 de agosto, estávamos as quatro - Cleide, Flávia, Meire e eu, porque Janaína já estava na cidade do sol, esperando por nós - indo em direção a Natal, no ônibus da Nordeste. Ali começava a nossa odisseia. A viagem duraria quatro horas. Duraria, não fossem as paradas constantes e o fluxo pesado à entrada da capital. Chegamos ao meio-dia, uma hora de atraso, e o ônibus que iria para Pipa já havia saído da plataforma quando lá chegamos. Resultado: esperamos mais uma hora até que outro ônibus chegasse. Quando me falavam que Pipa ficava perto de Natal, eu pensava: bom, acredito que em uma hora dê para chegar. Uma hora, só se a pessoa for em transporte próprio, não fizer paradas e tiver a sorte de não pegar um trânsito daqueles de permitir contemplar a paisagem, fazer unhas e maquiagem, e ficar lendo os dez capítulos restantes do romance iniciado dois meses antes! 

A essa altura, já estávamos há cerca de oito horas viajando. Eu pensava: é por uma causa justa e nobre, não é todo dia que podemos ver Marina Colasanti... Cleide, ao meu lado a viagem inteira, já olhava meio desesperançada pela janela do ônibus, que parava constantemente nas pequenas estações entre Natal e Pipa, nas quais às vezes aparecem meninos vendendo amendoim, castanha, pipoca, gelé, água mineral e o mais que a imaginação permite ou a necessidade obriga. Eu só tinha vontade de rir da impaciência dela, reclamando que a viagem não tinha fim, mas o respeito à aflição alheia me impedia de emitir qualquer gracejo.



Bem-aventurados os amantes de livros, que fazem de tudo
para ir ao encontro de seus escritores favoritos!
Às cinco da tarde, finalmente, chegamos à Pipa. O ônibus parou na pracinha à entrada da vila, descemos e nos demos conta de que tínhamos que enfrentar a pé uma ladeira com nossas malas até chegarmos à pousada e tomarmos um merecido banho. Assim o fizemos. Saímos para jantar, sabendo que não podíamos nos demorar, já que teríamos que subir a ladeira para chegar ao local onde estava acontecendo a Feira.

Sabe quando você está vivendo um momento de felicidade e se esquece de todas as dificuldades que passou a fim de vivenciar ao extremo aquele instante? Pois foi isso o que aconteceu quando, estando na primeira fila, vi Marina entrar naquela sala, com seu cabelo ruivo, preso num pequeno coque com uma fita azul escura combinando com a faixa de seu vestido, um sorriso largo e uns olhinhos incandescentes, e aquela voz suave que se espalhava sobre a plateia, confirmando sua alegria em estar cercada de professores para falar de algo que lhe era tão caro: literatura.

Ela contou histórias de sua infância, respondeu a perguntas de algumas professoras sobre o incentivo à leitura e o maravilhoso dentro de sua obra, confessou as dificuldades que teve quando se deparou com uma filha que não gostava de ler tanto quanto ela - até descobrir, em meio a uma crise de hepatite, as confissões de Christianne F. e só então se apaixonar pelos livros - e terminou sua fala contando-nos (não lendo, contando mesmo!) uma das tantas estórias que ela criou, inserindo os elementos do maravilhoso para falar de realidades mais profundas do ser humano. Nem precisa dizer de meu encantamento diante daquela mulher, e mais ainda ao vê-la contar de cor um conto inteiro, sem tirar nem pôr uma palavra sequer! O conto se chama Como uma carta de amor e intitula o livro que apresenta mais 12 estórias criadas por ela, a partir de sua sensibilidade aguçada em observar o mundo e as pessoas à sua volta. No vídeo abaixo, ela fala de onde lhe veio inspiração para escrevê-lo.





Naquela noite, depois de falar por cerca de uma hora, ela se dirigiu ao stand para autografar e tirar foto com todos que ali estavam porque a amavam, sem qualquer vaidade ou orgulho que a fizesse se sentir superior aos outros, o que aumentou a minha admiração. Antes, porém, de sair da sala, Marina chamou ao palco aqueles que quisessem fazer um registro fotográfico. Eu fui toda contente e só me lembrava do dia em que, diante de Rubem Alves, eu fiquei quase sem fala (até hoje Júnior me aperreia com essa história, dizendo que fiquei igual a cachorro que corre atrás de caminhão: quando o veículo para o cachorro fica sem saber o que fazer!). Graças a Deus, não foi o que aconteceu. Falei com Marina, disse-lhe de minha admiração, contei-lhe do trabalho com os diários de leitura - que mais tarde me renderiam uma dissertação de mestrado -, dei-lhe de presente um exemplar de meu Relicário e ainda tirei foto com ela. Foi uma noite memorável. 

Com a escritora Marina Colasanti
(nem dá para notar a alegria, não é?)

Na fila dos autógrafos, quando chegou minha vez, ela fez questão de escrever uma dedicatória especial para o meu filho num dos livros infanto-juvenis que eu havia adquirido momentos antes da palestra - quando Vinícius crescer mais um pouquinho, vou contar a ele toda essa história e ler o livro com ele, além, claro, de lhe mostrar a dedicatória carinhosa que ela fez. Cleide havia ficado com meu celular para tirar fotos, mas tenho a impressão de que ela estava tão emocionada que quase todas ficaram tremidas. No fim, o saldo foi positivo: conheci Marina, andei nas ruazinhas de Pipa, vi o mar de longe e voltei para casa cheia de livros. A volta, como sempre, foi bem mais rápida do que a ida. E não foi só a sensação, não. O táxi que nos levou para a rodoviária não fazia paradinhas, e o ônibus que pegamos para Mossoró também não.

Bom, depois de contar essa viagem fabulosa para ver Marina Colasanti, vou contar como entrei em contato com a literatura dela.

Eu estava cursando o primeiro ano do Ensino Médio, na Escola Estadual Abel Coelho, e no livro de Língua Portuguesa havia um pequeno conto intitulado Para que ninguém a quisesse, o qual abordava a submissão e o apagamento da identidade feminina, no âmbito do casamento. Foi, que eu me lembre, o primeiro texto de Marina que li. E já me chamava a atenção, naquela época, o fato de a personagem não ter nome próprio e ir, aos poucos, abrindo mão de si mesma a ponto de a narrativa mencionar que a mulher ficara "mimetizada com os móveis". No entanto, o conto, extraído do livro Contos de amor rasgados (tenho um exemplar que Davi me deu de presente há algum tempo e rio agora me lembrando que, nas últimas vezes em que nos falamos, ele me confessou que sonhara que estávamos comendo pastéis de carne de sol preparados pela escritora!!! Gente, vou precisar fazer um rodapé para minhas digressões, mas não podia, agora, deixar de mencionar esse sonho, porque falar em livros sempre me faz puxar uma memória atrás da outra!) - como eu ia dizendo, o conto não apresenta ainda elementos do maravilhoso, como vocês podem conferir abaixo.


Para que ninguém a quisesse

Porque os homens olhavam demais para a sua mulher, mandou que descesse a bainha dos vestidos e parasse de se pintar. Apesar disso, sua beleza chamava a atenção, e ele foi obrigado a exigir que eliminasse os decotes, jogasse fora os sapatos de saltos altos. Dos armários tirou as roupas de seda, da gaveta tirou todas as jóias. E vendo que, ainda assim, um ou outro olhar viril se acendia à passagem dela, pegou a tesoura e tosquiou-lhe os longos cabelos.
Agora podia viver descansado. Ninguém a olhava duas vezes, homem nenhum se interessava por ela. Esquiva como um gato, não mais atravessava praças. E evitava sair.
Tão esquiva se fez, que ele foi deixando de ocupar-se dela, permitindo que fluísse em silêncio pelos cômodos, mimetizada com os móveis e as sombras.
Uma fina saudade, porém, começou a alinhavar-se em seus dias. Não saudade da mulher. Mas do desejo inflamado que tivera por ela.
 
Então lhe trouxe um batom. No outro dia um corte de seda. À noite tirou do bolso uma rosa de cetim para enfeitar-lhe o que restava dos cabelos.
 
Mas ela tinha desaprendido a gostar dessas coisas, nem pensava mais em lhe agradar. Largou o tecido em uma gaveta, esqueceu o batom. E continuou andando pela casa de vestido de chita, enquanto a rosa desbotava sobre a cômoda.

COLASANTI, Marina. “Para que ninguém a quisesse”.
In: Contos de amor rasgados. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. P. 111-2.

Muito tempo depois, já licenciada em Letras e trabalhando com alunos de Ensino Médio, descobri o conto A moça tecelã e, nele, os elementos próprios das narrativas maravilhosas: a linguagem simbólica, metafórica, a ausência de nomes das personagens, a recorrência de tempos e espaços geralmente antigos, mas sem uma precisão de épocas, a abordagem de temáticas que dizem respeito ao universo interior do ser humano e, exatamente por isso, a possibilidade de se dirigirem esses contos a um público muito amplo. O vídeo abaixo apresenta esse conto, na interpretação da contadora Ailén Roberto:




A grande sacada dos contos maravilhosos, a meu ver, é a sua plurissignificação, decorrente das características já mencionadas. Não devemos, claro, pensar que os contos maravilhosos se reduzam aos já conhecidos contos de fadas. Não é necessariamente a presença de fadas, bruxas e encantamentos que faz um conto ser qualificado como maravilhoso, mas a atitude da personagem diante daquilo que, num outro contexto, poderia soar como estranho ou impossível. Assim, andar sobre fios de cabelo nas ondas do mar, ouvir uma cegonha falar, dar vida a um arbusto de rosas, ver poderes num pente de cabelo, são coisas normais para as personagens desse tipo de contos, porque ali, naquela realidade inventada, tudo é possível. 

Resultado de imagem para o conto de fadas nelly coelhoA gênese desses contos é muito mais antiga do que imaginamos. No livro O conto de fadas: símbolos - mitos - arquétipos, Nelly Coelho traz uma série de informações sobre as origens dessas narrativas cheias de magia. Versões ancestrais de estórias conhecidas nossas aparecem nas culturas egípcia e chinesa, por exemplo, e foi graças a muitos monges copistas e folcloristas que elas chegaram até nós. E como quem conta um conto aumenta um ponto, muitos foram os pontos acrescidos nessa trama simbólica. O livro de Nelly é leitura essencial para quem quer se aprofundar na temática, porque tanto apresenta um panorama geral dos contos ditos maravilhosos, como também traz a visão da psicanálise sobre as narrativas, desconstruindo a noção de que esse tipo de literatura não é para adultos. Muito pelo contrário, essas estórias revelam nosso mundo interior, ou melhor, aquilo que em nosso mundo interior escondemos ou não conseguimos acessar senão por meio das imagens e figuras despertas pela inventividade dos escritores.

Em Como uma carta de amor, há um conto intitulado Um presente no ninho, no qual a temática do caráter humano, especialmente as noções de egoísmo e altruísmo, emerge na figura de um casal destoante: ele, egocêntrico e azedo, tinha os olhos igualmente azedos para tudo que o cercava; ela, solícita e paciente, tinha os olhos igualmente doces para tudo que sua alma tocava, inclusive para ele, porque há sempre alguém que ama quem não sabe amar. Até que um dia uma cegonha aparece e bate-lhes a porta de casa para fazer um convite em troca da hospitalidade do casal em permitir que ela se acercasse da chaminé: Me ofereço para levar um de vocês para conhecer as terras d'África. Mas um só, porque não aguentaria atravessar o mar com o peso dos dois nas costas. Para o outro, deixarei um presente no ninho.

O marido, afirmando que presente é coisa de mulher, oferece-se rapidamente para a viagem. A mulher que fique em casa, chocando o ovo que a cegonha lhe destinara como regalo. E a mulher, que não gerara filhos, olhou o ovo com ternura, olhou ao redor e, não encontrando solução melhor, acomodou-se com cuidado em cima dele. Assumiu para si essa tarefa até que a casca se rompeu. Lá dentro, solitário, cintilava um diamante.

Quando leio as estórias de Marina Colasanti, fico muito tempo imaginando sua capacidade criativa e sua profundidade de observação e conhecimento. Como ela mesma sempre gosta de enfatizar, não escreve aleatoriamente, cada livro é um projeto no qual ela se lança sem receios nem enfados: lê, pesquisa, observa, guarda ideias e memórias, até que a obra nasça. Mas é muito genial sacar da manga, como se fosse uma ilusionista, essas imagens tão carregadas de sentidos que fazem de seus contos verdadeiros biscoitos finos ao paladar dos leitores. Nenhuma palavra é desperdiçada, tudo fica amarrado e tem sua devida importância no contexto.

Mas, prosseguindo, esse conto traz a simbologia da cegonha e do ovo como imagens da vida, a vida que ansiava por brotar do coração daquela mulher que não tivera filhos. Na sequência, o marido volta da viagem, tostado, a roupa estragada, tivera que esmolar nas ruas, trabalhar para os outros por um prato de comida, humilhar-se. Tal não foi sua surpresa ao reparar melhor na mulher e na casa, e perceber que tudo estava mais bonito. A mulher explica: do ovo nascera um diamante, cuja venda rendera-lhe muitos dividendos, permitindo que tudo por ali melhorasse. Mas a inveja, a inveja que dá movimentos demais aos olhos, como diria Ricardo Reis, percorreu o corpo inteiro daquele homem, que no verão seguinte candidatou-se a permanecer em casa para chocar o novo ovo da cegonha e deixar, sim, que sua mulher fosse viajar por aí com a ave dos ovos de diamante.

E o conto, curtinho, termina assim:

Ela estava justamente navegando no Nilo com seus novos amigos, na tarde em que ele sentiu debaixo de si um leve estalar, um estremecer, e levantou-se ávido. A rachadura da casca avançava, abria-se em cacos a branca curva. Viu um cintilar lá dentro, meteu a mão. A picada foi instantânea. No ovo enfim desfeito brilharam os olhos da serpente que, coleando, abandonou o ninho.

Em outras palavras, a gente só recebe aquilo que dá. É a velha lei do retorno. E o interessante é a imprevisibilidade dos desfechos que Marina dá às suas estórias. A mulher do conto queria muito ter tido filhos, mas não é do ovo da cegonha que eles vêm, como seria de se esperar. Aquela mulher jamais poderia ter filhos com um marido que só pensava em si e não se esforçava em dar de si aos outros. O amor e a dedicação dela não puderam ser direcionados a uma vida saída de seu ventre, mas foram destinados aos amigos que conseguiu conquistar nas terras distantes para onde a cegonha a levara. 

Espero que tenham gostado e se interessem em descobrir mais de Marina Colasanti. Ainda faltam muitos livros dela para eu ler, mas vez por outra saio navegando na web, leio uma estória ou outra, perscruto os poemas da autora também, que são belíssimos, e assim vou alimentando esse hábito que me dá tanta alegria.

Até a próxima!



Kalliane Amorim






Sobre ser amante de livros - parte 2

Comentando com alguns amigos sobre as comemorações alusivas ao dia do amante de livros, pedi-lhes que enviassem também suas próprias listas, para fazer jus ao item 6 de minha lista: Amantes de livros sempre arranjam um pretexto para se juntar com outros amantes de livros e conversar sobre tudo que diz respeito a livros.


Alguns enviaram listas mais longas, outros citaram poucos itens, e houve aqueles que mencionaram somente um ou dois aspectos relativos à sua experiência com os livros.

O primeiro foi meu amigo e também poeta Felipe Garcia:


1. Gosto de viver o livro fora da leitura. Por exemplo: se leio José de Alencar, quero encontrar na vida as suas inspirações. 
2. Gosto de conviver com personagens e versos que deram um nó em minha cabeça. Por aí, às vezes desato esse nós e os compreendo. 
3. Gosto de leitura que consegue te colocar na página e te expulsar dela como a mesma força e intensidade. 
4. Gosto de ver o que não vejo dentro do livros. Mais do que isso, de desver.
5. Livros são mais interessantes do que aplicativos para emagrecer. Descobri isso esses dias. 
6. Gosto de saber o cheiro que meus livros têm. É um ritual que os cachorros fazem para socializar e eu também. 
7. Um livro fechado na estante é um livro fechado. Um livro fechado nas mãos é um livro que pode ser aberto. É óbvio. 
8. Não risco livros nem coloco nome nos meus nem nada. Só marcadores. Livros devem ser repassados e eu não duro para sempre. 
9. Os livros mudaram minha vida. Graças a eles, encontrei várias razões para viver e várias formas de ser. Consegui até ser escritor! 
10. Uma selfie com um livro não é suficiente para leitura. Leia mais, pose menos. 
11. Eu me orgulho dos livros que li. Um livro é uma lembrança que nunca para de lembrar.


Depois, foi a vez de meu amigo Arthur Queiroga mencionar que gosta de ler os livros na língua original, por isso coleciona exemplares em diferentes traduções, e também em diversas línguas. O Pequeno Príncipe está em quatro volumes em sua estante: em francês, português, espanhol e alemão. Também tem diferentes versões de Harry Potter e O retrato de Dorian Gray.

Minha aluna Rosália confessou que quando ouve alguém falar de um livro, corre para pesquisar e, talvez, comprar, mesmo que ainda haja livros esperando ser lidos. Já Ester, outra aluna, contou-me sobre sua intimidade com os livros nessa lista que me mostrou quarta passada:


1. Eu sempre me imagino sendo uma personagem.
2. Choro e sorrio na companhia de um livro.
3. Caso não goste do final, crio mentalmente outro.
4. Falo com meus livros.
5. Tenho uma biblioteca digital.
6. Morro de ciúme de emprestar meus livros.
7. Morro de vontade de ir para Amsterdã e para o Alasca por causa de dois livros que li.
8. Imagino os animais falando muitas vezes, por causa de alguns livros.


Cadu Paiva, outro amigo, falou de seu descontentamento quando vê alguém usar a orelha do livro como marcador de página ou quando esquecem um livro dentro de um carro, ao sol (oh, céus, já me peguei fazendo isso, ainda que pouquíssimas vezes! Prometo não mais fazê-lo, Cadu!). E Clauder Arcanjo, meu amigo e editor, sempre muito zeloso com seus livros - todos os de sua biblioteca são cuidadosamente guardados em sacos transparentes, para não ficarem expostos à poeira - fala que não existe nada mais doloroso do que alguém pegar num livro sem antes lavar as mãos. Realmente, sujar as páginas com gordura, farelos de bolo e biscoito, respingos de café, é o mesmo que sujar a própria casa. 

Livros são objetos sagrados e, por isso, merecem todo o nosso cuidado, carinho e respeito. Assim como as pessoas. Aliás, livros são pessoas, em outro formato.

Até a próxima! 



Kalliane Amorim


quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Sobre ser amante de livros


Uma das primeiras mensagens que recebo hoje, 9 de agosto de 2017, é a de um mago de barba comprida e chapéu pontiagudo, saltitando em cima de um banquinho e tirando de sua mala mágica livros e mais livros. Logo abaixo havia escrito #bookloversday. Hoje é o dia do amante de livro - pelo menos na cultura americana, segundo o comentário da Nancy, que me enviou o gif assim que soube das comemorações.

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Pensando nisso, ocorreu-me fazer uma lista - as listas sempre correm o risco de ser incompletas, mesmo assim, faço a minha, que me vem agora à cabeça, pode ser que mais tarde eu mude ou acrescente alguma coisa, mas por ora é esta! Pensei numa lista de coisas que só amantes de livros fazem, uma lista de manias, ou melhor dizendo, qualidades de um amante de livros.


1. Amantes de livros sempre cheiram os livros, sejam eles novos ou velhos: o perfume mais agradável de livro que já senti foi uma edição dos poemas de Manoel de Barros que vinha numa caixa de papelão cru, com o livro amarrado por uma fita de cetim, as páginas soltas, o cheiro de perfume de lavanda, bem campestre: lembrou-me minha infância! Nunca me esqueci de meu professor de latim, Stélio Lima, que sempre cheirava os livros que levava para a sala de aula e dizia: o paraíso tem cheiro de livro novo!

2. Amantes de livros sempre tateiam os livros: adoro papel pólen soft e pólen bold!!! E gosto da textura que o papel adquire quando vai ficando envelhecido, como se uma fina camada de celulose fosse se soltando, o papel se desgastando, até que o livro vá envelhecendo e desapareça: a gente devia ser assim também...

3. Amantes de livros sempre levam livros para onde vão: seja na fila do banco, no supermercado, no salão de beleza, na viagem, no banheiro, na cozinha, lá estão o amante e seu objeto de amor, sempre juntos, ainda que não haja tempo de ler. Só o fato de levar a tiracolo um livro já faz do amante um ser diferente, inclusive para muita gente isso é um aspecto relevantessíssimo na conquista amorosa, mas aí já é outra conversa.

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4. Amantes de livros sempre compram livros e mais livros, mesmo sabendo que não lhes é possível ler todos no tempo que gostariam: o pensamento é este: vou comprar e vou ler, mas só quando terminar aquele romance, aquela coletânea de contos, aquele livro de ensaios, aquele diário...Os livros vão se amontoando na estante, nas gavetas, sobre as mesas, mas o amante acha que nunca é suficiente!

5. Amantes de livros sempre presenteiam os amigos com livros e adoram ganhar livros de presente: existe presente melhor do que um livro? Independentemente da idade do presenteado, lá estão eles, os livros, em pacotes simples com estampas da livraria, em embalagens sofisticadas ou mesmo sem embalagem alguma.


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6. Amantes de livros sempre arranjam um pretexto para se juntar com outros amantes de livros e conversar sobre tudo que diz respeito a livros: não falta assunto: a descrição de uma personagem, a sonoridade de um parágrafo ou estrofe, o estilo deste ou daquele autor, a biografia do escritor, a visão de mundo de uma personagem, o fluxo de consciência, os processos dialógicos... é assunto que não acaba mais!

7. Amantes de livros sempre compram edições do mesmo livro: porque não basta ter o livro, é preciso contemplar, preferencialmente na própria estante, diferentes modelos da mesma obra, examinar a qualidade da edição na escolha da capa, das páginas, do tradutor, se for o caso. E quando se consegue a primeira edição, numa dessas buscas ensandecidas em sebos ou após o contato, cheio de negociatas e acordos, com algum bibliófilo, é o êxtase!

8. Amantes de livros sempre sofrem quando veem alguém dobrando as páginas dos livros ou passando as páginas de modo a deixá-las com aquela ondulação horrível na borda inferior: sem maiores comentários, mas dá vontade de tomar das mãos do torturador o livro, que não tem nada a ver com os maus hábitos do indivíduo, e levar para casa a vítima, prestar-lhe os primeiros socorros e colocá-la na sua estante. Ou então dar uma lição de moral, o que nem sempre funciona, porque é uma questão de amor e nem todo mundo entende. Nesse mesmo item de sofrimento, incluo também o fato de ver alguém pegando livros sem antes lavar as mãos, ou escrevendo nomes e palavras na lateral, na parte das páginas. Isso não se faz!


Resultado de imagem para amor aos livros9. Amantes de livros sempre têm uma história malfadada de empréstimo de livro para contar: fazemos promessa para nunca mais emprestar os livros, porque já sofremos com as idas sem volta; anotamos o nome da pessoa num caderninho para não nos esquecermos de quem vai levando aquele exemplar que tanto estimamos, mas a folhinha, misteriosamente, desaparece, e pronto, nunca mais vemos os livros; mas mesmo com todo o sofrimento, teimamos em continuar emprestando porque acreditamos que as pessoas podem se transformar após a leitura de um livro, e isso é tão bom, não é, gente?

10. Amantes de livros sempre arrumam seus livros como bem entendem, mas ai de quem puser as mãos neles: há aqueles metódicos, que organizam seus livros em ordem alfabética, ou por assunto, ou por autor, ou por nacionalidade, ou por ordem de aquisição; há aqueles que contratam bibliotecários para organizar sua coleção; há quem siga somente uma inclinação estética e organize os livros pelo tamanho, pela cor ou pela espessura das lombadas; o amante organiza como bem entende, e é um prazer  imensurável realizar tal tarefa, um prazer exclusivo dele. Que ninguém, em sã consciência, ouse alterar a disposição de seus objetos de prazer, pois pode ser vítima de ataques furiosos e até mesmo de pragas rogadas pelo dono dos livros! Não é brincadeira, não!

11. Amantes de livros estudam línguas estrangeiras só para ter o prazer de ler seus livros favoritos na língua original: porque, convenhamos, por melhor que seja a tradução, nada se compara à leitura original, saída da pena, da caneta, da máquina datilográfica ou do computador do escritor. Ler na língua original é adentrar na percepção de mundo de uma cultura e, disso bem sabem os tradutores, uma versão escrita em outra língua pode fazer com que se perca muito da sonoridade e dos sentidos das palavras originais.

12. Amantes de livros memorizam facilmente as passagens que lhes marcaram: eu, particularmente, como leitora ávida de poesia, tenho na memória versos que aprendi na adolescência. Não tenho a mesma desenvoltura quando se trata de prosa, infelizmente, mas lembro de passagens marcantes pela reflexão que produziram em mim ou pela forma como foram escritas, como a descrição de Juliana em O primo Basílio, ou do beijo entre Capitu e Bentinho, no quarto dela; lembro-me da aflição de Gregor Samsa em seu quarto, transformado num monstruoso inseto, e da cena em que seu pai atira-lhe uma fruta de cera nas costas; lembro da tensão de Raskolnikóv no dia em que assassinou as duas mulheres; e lembro de outras inúmeras cenas que me tiraram o fôlego, de belas e intensas que são. Lembrando que há também os amantes que, para que a memória não lhes traia, colecionam trechos de seus livros favoritos, o que também é uma maneira de guardar o que se ama.

13. Amantes de livros sempre adquirem objetos relacionados a livros: nessa lista, entram marcadores de página, canetas, canecas, camisetas, almofadas, bolsas, quadros, esculturas, bottoms, e o que mais houver que faça referência às obras e aos autores que amamos. Tais objetos funcionam quase como sacramentos, permanecendo expostos nos ambientes domésticos ou laborais, ou então nos acompanhando como vestimenta ou acessório, sempre trazendo à memória a vida escondida nas páginas dos livros.


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14. Amantes de livros sempre ficam com os olhos brilhando quando entram numa livraria ou biblioteca: o pensamento que perpassa a mente nessas horas é um só: eu moraria aqui o resto da vida!... Mas como a vida requer outras vivências, temos nós outras obrigações e atividades a cumprir, lá vamos nós viver e aproveitar cada momento disponível para contemplar os objetos de nosso desejo e lê-los como se degustássemos uma deliciosa sobremesa, vagarosamente, para que não se acabe logo.

15. Amantes de livros sempre tentam convencer os outros, ainda que inconscientemente, sobre o prazer de ler livros: a experiência com o objeto livro - e digo objeto porque começa com o ativar das sensações que um livro físico provoca em nós, algo totalmente diferente do que acontece com a leitura em aparelhos eletrônicos - e com o universo que emerge de suas páginas é tão visceral, que transborda de nós, a ponto de muitas vezes, realmente, mover os outros com a paixão que nos acomete a alma. Perdi a conta das vezes em que amigos ou alunos me falaram que só leram determinado livro por influência minha: falei pelos cotovelos, insisti tanto, que a pessoa resolveu ler só para atestar se a obra era tão interessante como eu falava. A última vez em que isso aconteceu me deixou emocionada: estava em sala de aula quando ela chegou, pediu licença e me confessou que tinha vindo me procurar só para dizer que passara no curso de Letras, e que de alguma forma havia uma pontinha de influência minha na decisão dela. Meus olhos brilharam e eu pensei: mais uma para a irmandade!


Bom, essa é minha lista. Acredito que ainda ficaram alguns itens de fora, coisas de que agora não me lembro. Quem quiser dar sua contribuição, é só comentar!

Ah, antes de me despedir, deixo o link para um lindo curta-metragem sobre ser amante de livros: The fantastic flying books of Mr. Morris Lessmore. Créditos no vídeo.



Até mais!

segunda-feira, 31 de julho de 2017

Sobre o encantamento da palavra em Mia Couto

Domingo desses, amanheci com uma mensagem linda de uma ex-aluna, leitora e amiga:

"Achei esse seu projeto tão lindo, tão inspirador [...], chega dá vontade de tomar uma partezinha do seu entusiasmo e de ler e escrever com o seu pensamento. Quando você fala das cartas de Kahlil e Mary, parece que me vejo diante dos poemas de Vicente Huidobro e Mario Benedetti. São tão lindos que dá vontade de espalhar para todo mundo ler."

É uma felicidade sem tamanho essa que a leitura nos proporciona de ir tecendo uma verdadeira rede, na qual cada fio simboliza uma história, um poema, um livro, que, entrançados a outros fios, vão se estendendo ao infinito. Compartilhar nossas leituras é um ato de amor: amamos as palavras e os mundos por ela criados, queremos que todos vejam a sintam a beleza, o impacto, a emoção, e todas as sensações suscitadas pela leitura. Queremos semear no outro uma parte de nós.

Como uma leitura puxa outra leitura que puxa outra leitura, a mensagem de Mikaelli, domingo de manhã, reportou-me ao ano de 2014, quando lecionava na turma do terceiro ano do curso de Biocombustíveis, da qual ela fazia parte. Estávamos estudando o gênero romance e, para não ficarmos apenas em teorias literárias, obviamente partimos para a leitura. A turma, organizada em pequenos grupos, foi envolvida em várias tarefas que compunham uma gincana literária: havia desfile de personagens, montagem de trilha sonora para as narrativas, entrevistas com autores, panfletagem, entre outras. As tarefas eram realizadas em datas previamente marcadas com os alunos, porém toda semana, num dia específico, cada grupo tinha que me entregar o seu diário de leituras coletivo. Era minha primeira experiência conduzindo atividades com diários – tenho pensado seriamente em torná-los virtuais, nas próximas vezes, mas isso é assunto para outra hora.

Resultado de imagem para mia couto um rio chamado tempoUm dos livros sugeridos foi o romance Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. O primeiro obstáculo era a inexistência da obra na biblioteca para que os alunos tivessem acesso. Embora hoje se leia em tudo quanto é suporte, ainda creio que o contato com um livro físico tem lá sua magia, seu encantamento, seu aconchego. Então, foi o jeito dizer aos alunos que sim, eles teriam que ler a história de Marianinho no computador ou no celular, em arquivo no formato PDF. E eles leram. Inicialmente, uma certa dificuldade, as invenções poéticas da prosa de Mia e mesmo o vocabulário típico do português moçambicano foram as pedrinhas no meio do caminho. Mas nada que a boa vontade e a curiosidade sobre o remetente das misteriosas cartas que o protagonista recebia não resolvessem.


A trama de Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra gira em torno da indefinível morte de Dito Mariano, a qual obriga seu neto Marianinho a retornar à ilha de Luar-do-Chão, local onde vivera sua infância e do qual tinha partido após a morte de sua mãe. Esse caminho de volta se constituirá, na trajetória de Marianinho, um retorno às suas raízes, ao seu povo, uma viagem para o interior de sua própria história de vida, tão cercada de segredos e verdades inventadas. Cada capítulo é antecedido de uma frase, um ditado, de alguma das personagens que povoam a narrativa. E logo nas primeiras linhas, a história contada pelo neto – o porta-voz dos Malilanes (ou Marianos, como ficou sendo chamada a família após a influência da língua portuguesa – lembremos que o contexto é a África lusitana) – deparamo-nos com passagens que já nos levam a profundas reflexões:

"A morte é como o umbigo: o quanto nela existe é a sua cicatriz, a lembrança de uma anterior existência. A bordo do barco que me leva à Ilha de Luar-do-Chão não é senão a morte que me vai ditando suas ordens. Por motivo de falecimento, abandono a cidade e faço a viagem: vou ao enterro de meu Avô Dito Mariano.
Cruzo o rio, é já quase noite. Vejo esse poente como o desbotar do último sol. A voz antiga do Avô parece dizer-me: depois deste poente não haverá mais dia. E o gesto gasto de Mariano aponta o horizonte: ali onde se afunda o astro é o mpela djambo, o umbigo celeste. A cicatriz tão longe de uma ferida tão dentro: a ausente permanência de quem morreu. No Avô Mariano confirmo: morto amado nunca mais para de morrer."

Imaginem receber a notícia de que um avô a quem muito se ama está morrendo. Estar morrendo e morrer, na fala do Tio Abstinêncio, são a mesma coisa. Marianinho se perturba com a visita inesperada de seu tio, que há anos não colocava o pé fora de casa. À medida que o barco avança em direção à ilha, o jovem tenta se convencer de que bem poderiam tê-lo deixado lá, na cidade, com suas ocupações de estudante universitário. Pensa no seu pai, Fulano Malta, ex-guerilheiro de alma sensível, com quem tinha uma relação complicada – dá para notar logo no começo da narrativa que os dois têm contas a acertar; pensa no tio Ultímio, o último dos filhos, envolvido na política e distante da família, ávido por riquezas e posição social; pensa no tio Abstinêncio, ali a seu lado, envergado dentro da própria escuridão – pele e roupa escura, fechado em si mesmo, só sairia de casa mesmo por motivo mais que importante, fatal. E assim foi. Mas foi contra a própria vontade, que a tradição mandava ser o filho mais velho a fazer as honras fúnebres do pai. A mando de Dito Mariano, que expressara muito antes este desejo, Abstinêncio vai à procura do sobrinho: ele quem deveria conduzir o funeral. A presença de Marianinho torna-se, então, um conflito naquela família: como pode ser o neto a plantar o avô (em Luar-do-Chão, não se diz enterrar, mas plantar o falecido), ainda mais um neto que estava distante da ilha e de toda a tradição?

Rondam esse retorno de Marianinho inúmeros mistérios: a tarja preta que não parava de crescer na roupa de tio Abstinêncio, a cega e meio vidente Miserinha que lança seu lenço de todas as cores no rio para proteger o rapaz, o gato que farejava as moças disponíveis e levou Dito, nos tempos de namoro, à sua Dulcineusa, as cartas que aparecem e desaparecem sem explicação, a terra que não se abre para receber o corpo de Mariano. A cada capítulo, as relações entre as personagens vão se imbricando mais e mais, o que dá ao romance ares de novela: o que vai acontecer nas próximas cenas? O que sabemos é que aquela Nyumba-Kaya – expressão que significa "casa-casa", escolhida para agradar aos familiares da parte sul e da parte norte da ilha (por aí já imaginamos os conflitos!) – guarda segredos os mais diversos. E é uma delícia ir lendo e desvendando-os pouco a pouco, junto às personagens maravilhosas criadas por Mia.

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O escritor moçambicano Mia Couto
Na primeira vez em que li o romance, tentei fazer o que tenho costume nas minhas leituras: destacar as passagens que mais dialogam com minhas vivências, que mais me chamam atenção pelas reflexões que suscitam ou pela beleza na escolha das palavras e nos sentidos que delas emergem. Percebi que seria quase uma tarefa inútil: a expressão poética, metafórica, das palavras de Mia, exala seus perfumes inebriantes em todas as páginas, de modo que não se pode dizer qual trecho é mais bonito, mais significativo, mais emblemático do tema de que ele trata na obra. 

Falar sobre a morte é sempre falar da vida e suas dores e alegrias. Assim, à medida que os mistérios vão sendo desvendados, percebemos o quanto a personagem central, Marianinho, vai crescendo em profundidade na sua relação com a avó, com os tios e tias, com o povo da ilha. Em vários momentos, nós, leitores, vamos nos identificando com as histórias dos Marianos, afinal família só muda mesmo de endereço. Não vou mencionar tudo que achei bonito nessa narrativa que já é um clássico no meu cânone particular, mas gostaria de compartilhar alguns trechos que, pelo menos para mim, são muito significativos:

"A grande casa está defronte a mim, desafiando-me como uma mulher. Uma vez mais, matrona e soberana, a Nyumba-Kaya se ergue de encontro ao tempo. Seus antigos fantasmas estão, agora, acrescentados pelo espírito do falecido Avô. E se confirma a verdade das palavras do velho Mariano: eu teria residências, sim, mas casa seria aquela, única, indisputável."

"[...] quem parte de um lugar tão pequeno, mesmo que volte, nunca retoma."

"O bom do caminho é haver volta. Para ida sem vinda basta o tempo."

"E explicava: dormir com alguém é a intimidade maior. Não é fazer amor. Dormir, isso é que é íntimo. Um homem dorme nos braços de mulher e a sua alma se transfere de vez. Nunca mais ele encontra suas interioridades."

"Lá fora, a vida desfilava, impávida. Injustiça é o mundo prosseguir assim mesmo quando desaparece quem mais amamos."

"A dor pede pudor. O sofrimento é uma nudez - não se mostra aos públicos."

"Infelizmente, os ilhéus eram tão pequenos que apenas queriam ser como os grandes."

"Miserinha exclama: como estamos doentes, todos nós! Era ela que estava vendo sombras? Ou seriam os demais que já nada enxergavam, doentes dessa cegueira que é deixarmos de sofrer pelos outros?"

"Os lugares não se encontram, constroem-se."

"A saudade é uma ferrugem, raspa-se e por baixo, onde acreditávamos limpar, estamos semeando nova ferrugem."

"Afinal, a maior aspiração do homem não é voar. É visitar o mundo dos mortos e regressar, vivo, ao território dos vivos."

Muitas outras temáticas vão permeando a narrativa de Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, desde questões políticas, como o processo de independência das colônias portuguesas na África, até questões sociais, como a condição da mulher na sociedade. Mas é a trama em redor das memórias de família e da morte como acontecimento que pode nos trazer de volta à vida, que vai tecendo o fio condutor da história de Marianinho e sua Luar-do-Chão. Uma linda reflexão sobre a casa como espaço de memória e a família como "lugar onde somos eternos".

Até a próxima!


Kalliane Amorim
P.S.: Mikaelli, venha compartilhar suas leituras de Vicente Huidobro e Mario Benedetti aqui no blog. Não é um pedido de amiga, é uma intimação de professora!

sexta-feira, 21 de julho de 2017

Sobre as cartas de Kahlil Gibran e Mary Haskell - parte 2

Passo as mãos sobre a capa de O grande amor do profeta: as cartas de amor de Kahlil Gibran e Mary Haskell e o seu diário particular, sinto-lhe a textura, abro-o e folheio as primeiras páginas... Vêm à mente as palavras de Clarice: não era uma menina e um livro, era uma mulher e seu amante. Sinto-me assim, ao pousar os olhos na correspondência deles dois. A leitura dessas cartas opera o milagre da ressurreição. Estão ambos tão perto de mim, tão vivos! Imagino-lhes as mãos escrevendo as missivas, imagino-lhes a voz tratando-se por "minha querida Mary" e "meu adorado Kahlil". Amo-os, como a amigos próximos. Amigos a quem desejo descobrir e com os quais desejo aprender, porque o que é a amizade senão essa vontade de partilhar a vida à medida que se escala a montanha da sabedoria? Amigo é para rir, para chorar, para ralhar, para crescer, para brigar e fazer as pazes, para contemplar o eterno no transitório sobre o fio delicadíssimo da existência.

Fico pensando comigo: Kahlil e Mary guardaram essas cartas pelo que representavam um para o outro. Em várias passagens, eles comentam que as reliam quando ficavam um tempo mais longo sem se corresponderem: ao ler, trazemos quem amamos para perto de nós. Cartas e diários, guardados em caixas e gavetas durante uma vida inteira, provas da tessitura de uma relação que só pertencia a eles dois – a existência e importância de Mary na obra de Kahlil só veio à tona depois que a correspondência tornou-se pública, mais de quarenta anos após a morte do escritor e pintor. Em momento algum, Haskell quis aparecer como merecedora de algum tipo de honraria pelos benefícios que seu apreço e seu conhecimento das artes operaram na produção artística de Gibran. Manteve-se no silêncio, como sempre preferiu. Mas por que, tendo morrido aquele homem a quem amara tão profundamente, ela decide que as cartas deveriam, sim, ser publicadas?

Na abertura do livro, uma possível explicação. Foi ao lado de Barbara Young, biógrafa de Kahlil, que a caixa com as cartas foi encontrada, no estúdio de Gibran. Durante anos, Barbara conviveu com o escritor e nunca soube da relação mais íntima entre os dois. Quando estavam organizando os pertences de Gibran, eis que descobrem a caixa, cuidadosamente escondida. Mary acreditava que ele não tinha preservado as correspondências, já que lhe recomendara, inclusive com insistência, que fossem queimadas, pois poderiam surgir mal-entendidos. Mary, que a princípio concordara, resolveu desistir da ideia, porém nada comunicou ao amigo. Agora, diante do tesouro, devia se sentir emocionada, vendo que ele atribuíra às cartas o mesmo significado que ela deu às dele.

"Mary achou que tanto suas cartas quanto as de Gibran pertenciam a um futuro que preservaria a memória do artista como ela o fizera, e levou consigo a coletânea, conservando-a na casa de Savannah, na Geórgia, onde passou os últimos anos de sua vida."

Levou-as consigo e reuniu-as ao seu diário particular, autorizando a publicação para o conhecimento de todos – todos aqueles que, admiradores da obra do libanês, quisessem conhecer sua intimidade, seus pensamentos e sentimentos, descritos nas páginas e mais páginas que mantiveram unidas as duas almas.

Há um tempo em que fantasiamos a figura dos escritores, inventamos para nós um perfil aureolado e intocável dessas criaturas humanas, como se fossem deuses ou, no mínimo, seres diferenciados, num patamar mais elevado de existência. Esquecemos que eles dormem e acordam, adoecem e se preocupam, têm manias e defeitos, como qualquer outra pessoa. Esquecemos que nem sempre aquilo que escrevem reflete, verdadeiramente, sua índole, seu caráter, suas atitudes em relação aos outros no decorrer na vida.

Quando o tempo de ilusões passa, e conseguimos ver o homem por trás do escritor, passamos a compreender suas lutas, suas conquistas, seu trabalho, suas derrotas, suas paixões... Vemos que a sua humanidade se mostra, sem floreios, ainda mais quando deixa rastros em cartas e diários, esses espaços confidenciais tão almejados pelos olhos dos leitores que encontram tanto encantamento na vida dos seus autores prediletos.

Kahlil e Mary construíram sua amizade lenta e continuamente, uniram suas vidas pelo desejo de se tornarem melhores, e as artes - especialmente a pintura e a literatura - permearam a vida dos dois, ao lado de sua busca por uma espiritualidade enraizada no cotidiano, na vivência com os outros.

Numa das cartas, datada de 23 de junho de 1909, Kahlil, de Paris, escreve a Mary:


"Perdi meu pai, adorada Mary. Ele morreu na velha casa onde nasceu há 65 anos. As duas últimas cartas que escreveu fazem-me chorar a cada leitura. Seus amigos me escreveram, contando que ele me abençoou antes de o fim chegar.
Agora eu sei, querida Mary, que ele descansa nos braços de Deus, e, no entanto,  não posso evitar um sentimento de pranto e saudade. Não posso deixar de sentir a pesada mão da Morte sobre minha testa. Não consigo deixar de ver as sombras difusas e tristes dos dias passados, quando ele, minha mãe, meu irmão e minha irmã pequena viviam e sorriam diante do sol. Onde estarão eles agora? Em alguma região desconhecida? Estarão juntos? Será que se recordam do passado como nós? Estarão próximos deste nosso mundo, ou muito, muito distantes? Sei, querida Mary, que eles vivem. Vivem uma vida mais real, mais bela do que a nossa. Estão mais próximos de Deus do que nós.
O véu das sete dobras não mais se ergue entre os olhos deles e a Verdade. Já não brincam de esconder com o Espírito. Sinto tudo isto, querida Mary, e, no entanto, não consigo evitar a dor do pranto e da saudade.
E você – meu querido e doce consolo – está agora no Havaí, ilhas tão amadas pelo sol. Está do outro lado deste planeta. Seus dias são noites em Paris. Você pertence a outra ordem de tempo. E, apesar disso, está tão perto de mim. Caminha a meu lado quando estou só; à noite, sentamo-nos juntos à mesa, e, enquanto trabalho, conversa comigo.
[...]
Dê lembranças minhas aos vales e às montanhas do Havaí.
Beijo-lhe as mãos, querida Mary; fecho os olhos agora, e é você que vejo, querida amiga.
Kahlil"


Uma carta como essa leva-nos à lembrança dos que já partiram e traz de volta nossas indagações sobre a vida e a morte, essas irmãs siamesas, uma sempre ensinando à outra como devemos conduzir nossos dias a fim de que, um dia, possamos tirar da fronte o "véu das sete dobras". Nesse percurso em que encontramos a finitude tantas vezes, a memória de um amigo pode nos dar conforto, alento, pode ser uma companhia ainda que ausente.

Em 19 de setembro de 1911, Gibran escreve um bilhete à amiga, depois de pegar uma das linhas de navegação que faziam transporte de passageiros de Nova York a Boston, na noite anterior. Nesse bilhete, como também em outras cartas, podemos perceber o quanto o escritor buscava uma ascensão espiritual, na observação do mundo ao redor e das situações vivenciadas por ele, o que de certa forma influenciou a escrita de sua obra mais famosa, O profeta.


"Tive uma noite insone e mística a bordo. Não havia camarotes disponíveis,e  os leitos exalavam um odor de embriaguez, de forma que passei a noite no convés, com as estrelas, a lua brilhante como uma lâmina, e , depois, um maravilhoso alvorecer. A lembrança de uma noite como esta é eterna. A música do mar, envolta num estranho véu de silêncio, e aqueles incontáveis mundos luminosos, navegando mansamente pelo espaço incomensurável, trouxeram-me à mente um milhão de pensamentos elevados.
Kahlil"


Em 6 de maio de 1918, Mary escreve em seu diário o que ouvira de Gibran na noite anterior, a respeito de seu projeto, inicialmente intitulado Conselhos.


"'Sim, eu já venho matutando dentro de mim há algum tempo o grande texto em inglês sobre o qual lhe escrevi. Nos últimos meses, ele se tem desenvolvido e eu dei a partida. Deverá ter 21 partes, e já escrevi 16.'
Kahlil contou primeiramente o prólogo, que ainda não está escrito. Numa cidade entre as planícies e o mar, onde chegam os navios e onde os rebanhos passam nos campos atrás da cidade, um homem erra pelos campos e um pouco por entre o povo. É poeta, vidente e profeta, ama a todos e é por todos amado, mas irradia uma certa solidão. Gostam de ouvi-lo falar, sentem-lhe a beleza e a ternura, mas, no seu amor por ele, jamais se aproximam.
Até mesmo as jovens que se sentem atraídas por sua bondade, não ousam apaixonar-se por ele. E, enquanto as pessoas o consideram como parte da cidade, e gostam de tê-lo lá e de vê-lo a conversar com seus filhos nos campos, há uma consciência de que tudo isto é temporário, de que algum dia ele partirá. E, um dia surge no horizonte um navio, em direção à cidade. Sem que nada seja dito, de algum modo todos sabem que a embarcação vem buscar o poeta eremita.
E, agora que vão perdê-lo, desperta neles o sentimento daquilo que ele representa em suas vidas e todos se reúnem na costa. Ele vem para lhes falar. E um deles diz: 'Fale-nos da Amizade' - e assim por diante. E ele fala sobre essas coisas. 'É acerca do que ele lhes diz que tenho escrito'.
[...]
'Não estou tentando escrever poesia. Procuro expressar pensamentos. Quero o ritmo e a palavra de tal forma que não sejam percebidos, mas que simplesmente penetrem como a água no tecido, e que o pensamento seja aquilo que fique registrado.'
[...]
'Reparou como estas coisas estão plenas daquilo que dissemos em nossas conversas, há alguns anos?', comentou Kahlil.
'Nelas, nada existe que não se tenha originado de nossas conversas. Falar com você sobre elas fez com que se tornassem claras para mim.'
[...]
Quando ele descreveu o poeta eremita dos Conselhos e a relação entre ele e as pessoas da cidade, era uma descrição fiel do modo com que as pessoas reagem em relação a ele. E ele o expressou com fidelidade e domínio total. As palavras eram justas e adequadas. É algo de solene e de inacreditável olhar nos seus olhos e ouvi-lo dizer, como um poema, aquilo que lhe vai no interior. As palavras parecem pequenas ondas num mar de solidão, sob céus imensos."


Se pudesse, compartilharia aqui todas as cartas, e cada um poderia se deleitar com as palavras trocadas entre Mary e Gibran. Porém as mãos já se cansam de digitar, e o melhor a fazer, para quem desejar ler as cartas, é se aventurar numa saga como a minha para encontrar o livro a um preço acessível. Já disse, emprestar eu não empresto, porque tenho ciúmes. Mas posso fazer a delicadeza de vez por outra postar uma cartinha deles ou um trecho do diário dela.


Até a próxima!


Kalliane Amorim

Ribeira

Quando a Poesia e a Música se encontram, nasce a Beleza. E esta sempre é um caminho de encontro com Deus, se carrega consigo a Bondade e a V...