sexta-feira, 21 de julho de 2017

Sobre as cartas de Kahlil Gibran e Mary Haskell - parte 2

Passo as mãos sobre a capa de O grande amor do profeta: as cartas de amor de Kahlil Gibran e Mary Haskell e o seu diário particular, sinto-lhe a textura, abro-o e folheio as primeiras páginas... Vêm à mente as palavras de Clarice: não era uma menina e um livro, era uma mulher e seu amante. Sinto-me assim, ao pousar os olhos na correspondência deles dois. A leitura dessas cartas opera o milagre da ressurreição. Estão ambos tão perto de mim, tão vivos! Imagino-lhes as mãos escrevendo as missivas, imagino-lhes a voz tratando-se por "minha querida Mary" e "meu adorado Kahlil". Amo-os, como a amigos próximos. Amigos a quem desejo descobrir e com os quais desejo aprender, porque o que é a amizade senão essa vontade de partilhar a vida à medida que se escala a montanha da sabedoria? Amigo é para rir, para chorar, para ralhar, para crescer, para brigar e fazer as pazes, para contemplar o eterno no transitório sobre o fio delicadíssimo da existência.

Fico pensando comigo: Kahlil e Mary guardaram essas cartas pelo que representavam um para o outro. Em várias passagens, eles comentam que as reliam quando ficavam um tempo mais longo sem se corresponderem: ao ler, trazemos quem amamos para perto de nós. Cartas e diários, guardados em caixas e gavetas durante uma vida inteira, provas da tessitura de uma relação que só pertencia a eles dois – a existência e importância de Mary na obra de Kahlil só veio à tona depois que a correspondência tornou-se pública, mais de quarenta anos após a morte do escritor e pintor. Em momento algum, Haskell quis aparecer como merecedora de algum tipo de honraria pelos benefícios que seu apreço e seu conhecimento das artes operaram na produção artística de Gibran. Manteve-se no silêncio, como sempre preferiu. Mas por que, tendo morrido aquele homem a quem amara tão profundamente, ela decide que as cartas deveriam, sim, ser publicadas?

Na abertura do livro, uma possível explicação. Foi ao lado de Barbara Young, biógrafa de Kahlil, que a caixa com as cartas foi encontrada, no estúdio de Gibran. Durante anos, Barbara conviveu com o escritor e nunca soube da relação mais íntima entre os dois. Quando estavam organizando os pertences de Gibran, eis que descobrem a caixa, cuidadosamente escondida. Mary acreditava que ele não tinha preservado as correspondências, já que lhe recomendara, inclusive com insistência, que fossem queimadas, pois poderiam surgir mal-entendidos. Mary, que a princípio concordara, resolveu desistir da ideia, porém nada comunicou ao amigo. Agora, diante do tesouro, devia se sentir emocionada, vendo que ele atribuíra às cartas o mesmo significado que ela deu às dele.

"Mary achou que tanto suas cartas quanto as de Gibran pertenciam a um futuro que preservaria a memória do artista como ela o fizera, e levou consigo a coletânea, conservando-a na casa de Savannah, na Geórgia, onde passou os últimos anos de sua vida."

Levou-as consigo e reuniu-as ao seu diário particular, autorizando a publicação para o conhecimento de todos – todos aqueles que, admiradores da obra do libanês, quisessem conhecer sua intimidade, seus pensamentos e sentimentos, descritos nas páginas e mais páginas que mantiveram unidas as duas almas.

Há um tempo em que fantasiamos a figura dos escritores, inventamos para nós um perfil aureolado e intocável dessas criaturas humanas, como se fossem deuses ou, no mínimo, seres diferenciados, num patamar mais elevado de existência. Esquecemos que eles dormem e acordam, adoecem e se preocupam, têm manias e defeitos, como qualquer outra pessoa. Esquecemos que nem sempre aquilo que escrevem reflete, verdadeiramente, sua índole, seu caráter, suas atitudes em relação aos outros no decorrer na vida.

Quando o tempo de ilusões passa, e conseguimos ver o homem por trás do escritor, passamos a compreender suas lutas, suas conquistas, seu trabalho, suas derrotas, suas paixões... Vemos que a sua humanidade se mostra, sem floreios, ainda mais quando deixa rastros em cartas e diários, esses espaços confidenciais tão almejados pelos olhos dos leitores que encontram tanto encantamento na vida dos seus autores prediletos.

Kahlil e Mary construíram sua amizade lenta e continuamente, uniram suas vidas pelo desejo de se tornarem melhores, e as artes - especialmente a pintura e a literatura - permearam a vida dos dois, ao lado de sua busca por uma espiritualidade enraizada no cotidiano, na vivência com os outros.

Numa das cartas, datada de 23 de junho de 1909, Kahlil, de Paris, escreve a Mary:


"Perdi meu pai, adorada Mary. Ele morreu na velha casa onde nasceu há 65 anos. As duas últimas cartas que escreveu fazem-me chorar a cada leitura. Seus amigos me escreveram, contando que ele me abençoou antes de o fim chegar.
Agora eu sei, querida Mary, que ele descansa nos braços de Deus, e, no entanto,  não posso evitar um sentimento de pranto e saudade. Não posso deixar de sentir a pesada mão da Morte sobre minha testa. Não consigo deixar de ver as sombras difusas e tristes dos dias passados, quando ele, minha mãe, meu irmão e minha irmã pequena viviam e sorriam diante do sol. Onde estarão eles agora? Em alguma região desconhecida? Estarão juntos? Será que se recordam do passado como nós? Estarão próximos deste nosso mundo, ou muito, muito distantes? Sei, querida Mary, que eles vivem. Vivem uma vida mais real, mais bela do que a nossa. Estão mais próximos de Deus do que nós.
O véu das sete dobras não mais se ergue entre os olhos deles e a Verdade. Já não brincam de esconder com o Espírito. Sinto tudo isto, querida Mary, e, no entanto, não consigo evitar a dor do pranto e da saudade.
E você – meu querido e doce consolo – está agora no Havaí, ilhas tão amadas pelo sol. Está do outro lado deste planeta. Seus dias são noites em Paris. Você pertence a outra ordem de tempo. E, apesar disso, está tão perto de mim. Caminha a meu lado quando estou só; à noite, sentamo-nos juntos à mesa, e, enquanto trabalho, conversa comigo.
[...]
Dê lembranças minhas aos vales e às montanhas do Havaí.
Beijo-lhe as mãos, querida Mary; fecho os olhos agora, e é você que vejo, querida amiga.
Kahlil"


Uma carta como essa leva-nos à lembrança dos que já partiram e traz de volta nossas indagações sobre a vida e a morte, essas irmãs siamesas, uma sempre ensinando à outra como devemos conduzir nossos dias a fim de que, um dia, possamos tirar da fronte o "véu das sete dobras". Nesse percurso em que encontramos a finitude tantas vezes, a memória de um amigo pode nos dar conforto, alento, pode ser uma companhia ainda que ausente.

Em 19 de setembro de 1911, Gibran escreve um bilhete à amiga, depois de pegar uma das linhas de navegação que faziam transporte de passageiros de Nova York a Boston, na noite anterior. Nesse bilhete, como também em outras cartas, podemos perceber o quanto o escritor buscava uma ascensão espiritual, na observação do mundo ao redor e das situações vivenciadas por ele, o que de certa forma influenciou a escrita de sua obra mais famosa, O profeta.


"Tive uma noite insone e mística a bordo. Não havia camarotes disponíveis,e  os leitos exalavam um odor de embriaguez, de forma que passei a noite no convés, com as estrelas, a lua brilhante como uma lâmina, e , depois, um maravilhoso alvorecer. A lembrança de uma noite como esta é eterna. A música do mar, envolta num estranho véu de silêncio, e aqueles incontáveis mundos luminosos, navegando mansamente pelo espaço incomensurável, trouxeram-me à mente um milhão de pensamentos elevados.
Kahlil"


Em 6 de maio de 1918, Mary escreve em seu diário o que ouvira de Gibran na noite anterior, a respeito de seu projeto, inicialmente intitulado Conselhos.


"'Sim, eu já venho matutando dentro de mim há algum tempo o grande texto em inglês sobre o qual lhe escrevi. Nos últimos meses, ele se tem desenvolvido e eu dei a partida. Deverá ter 21 partes, e já escrevi 16.'
Kahlil contou primeiramente o prólogo, que ainda não está escrito. Numa cidade entre as planícies e o mar, onde chegam os navios e onde os rebanhos passam nos campos atrás da cidade, um homem erra pelos campos e um pouco por entre o povo. É poeta, vidente e profeta, ama a todos e é por todos amado, mas irradia uma certa solidão. Gostam de ouvi-lo falar, sentem-lhe a beleza e a ternura, mas, no seu amor por ele, jamais se aproximam.
Até mesmo as jovens que se sentem atraídas por sua bondade, não ousam apaixonar-se por ele. E, enquanto as pessoas o consideram como parte da cidade, e gostam de tê-lo lá e de vê-lo a conversar com seus filhos nos campos, há uma consciência de que tudo isto é temporário, de que algum dia ele partirá. E, um dia surge no horizonte um navio, em direção à cidade. Sem que nada seja dito, de algum modo todos sabem que a embarcação vem buscar o poeta eremita.
E, agora que vão perdê-lo, desperta neles o sentimento daquilo que ele representa em suas vidas e todos se reúnem na costa. Ele vem para lhes falar. E um deles diz: 'Fale-nos da Amizade' - e assim por diante. E ele fala sobre essas coisas. 'É acerca do que ele lhes diz que tenho escrito'.
[...]
'Não estou tentando escrever poesia. Procuro expressar pensamentos. Quero o ritmo e a palavra de tal forma que não sejam percebidos, mas que simplesmente penetrem como a água no tecido, e que o pensamento seja aquilo que fique registrado.'
[...]
'Reparou como estas coisas estão plenas daquilo que dissemos em nossas conversas, há alguns anos?', comentou Kahlil.
'Nelas, nada existe que não se tenha originado de nossas conversas. Falar com você sobre elas fez com que se tornassem claras para mim.'
[...]
Quando ele descreveu o poeta eremita dos Conselhos e a relação entre ele e as pessoas da cidade, era uma descrição fiel do modo com que as pessoas reagem em relação a ele. E ele o expressou com fidelidade e domínio total. As palavras eram justas e adequadas. É algo de solene e de inacreditável olhar nos seus olhos e ouvi-lo dizer, como um poema, aquilo que lhe vai no interior. As palavras parecem pequenas ondas num mar de solidão, sob céus imensos."


Se pudesse, compartilharia aqui todas as cartas, e cada um poderia se deleitar com as palavras trocadas entre Mary e Gibran. Porém as mãos já se cansam de digitar, e o melhor a fazer, para quem desejar ler as cartas, é se aventurar numa saga como a minha para encontrar o livro a um preço acessível. Já disse, emprestar eu não empresto, porque tenho ciúmes. Mas posso fazer a delicadeza de vez por outra postar uma cartinha deles ou um trecho do diário dela.


Até a próxima!


Kalliane Amorim

Um comentário:

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