segunda-feira, 8 de junho de 2020

De como nascem os poemas

Poesia é, antes de tudo, um exercício de olhar. Por isso é tão democrática, vive nos olhos de letrados e iletrados, habita a alma de quem quer que se recuse a sucumbir sob os coturnos da vida e veja, inclusive nesses coturnos, algum brilho capaz de provocar um movimento na alma.

Não há temas que não sirvam à poesia, como diriam os famosos versos da canção Clube da Esquina II: "De tudo se faz canção, e o coração na curva de um rio, um rio, um rio, um rio, um rio..."

...

Era final de ano, e meu amigo Hildeberto Barbosa me envia outro de seus exercícios poéticos, direto de Maceió, à beira-mar:

Agora espio o mar
e as águas dançam
sob o sol, pequeno
verso solitário
que colore a vida,
dá calor à alma
dos homens
e dos vegetais.

Espiando o mar,
lembro como és
líquida e lânguida,
palavra alada
que voa por dentro
de meu velho corpo.

É chegada
a hora de partir
para o nada
da aventura.
Fazer a última
viagem por dentro
do coração.
Amar a gratuidade
de perder
e ser maior
no que resta,
nas sobras do ser.


Diante de mim, também havia água, uma garrafa de água mineral. Não estava desfrutando do mesmo prazer de me embebedar da paisagem marítima, porém há sempre que se contentar com o que se tem, cada momento, com tudo que nele há, vale. E, olhando para minha garrafa de água mineral, já sorvidos alguns goles, respondi aos versos de meu amigo:

Pois agora -
espia só -
espio a garrafa
de água
sobre a mesa.
A garrafa,
meio cheia,
meio vazia.
A água,
em estado 
de calmaria.

E lembro
que é fundo,
profundo,
o poço
onde a sede,
em ondas,
se agita.
E penso
que enquanto
há sede,
o olho cintila.

Por isso
não movo um dedo
em direção
à garrafa sobre a mesa.
Nesse intervalo
entre a coisa e o ser,
um verso, talvez,
amanheça.


Como disse Bahktin em uma de suas primeiras obras, só o demorar-se amorosamente sobre um objeto confere ao homem essa capacidade de criar, de produzir, de elevar a si mesmo. Assim seja!




Kalliane Amorim



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