quinta-feira, 11 de junho de 2020

De memórias e canções

Hoje, 11 de junho de 2020, a Igreja Católica celebra a festa do Corpo e do Sangue de Jesus Cristo, vivo e presente na eucaristia. Em todo o mundo, o Santíssimo sai em procissão pelas ruas - o único dia do ano litúrgico em que oficialmente ele sai, levado por bispos e sacerdotes, com toda a pompa, cercado de religiosos, incensado, tendo em seu caminho inúmeros tapetes de sal colorido, serragem, pó de café, formando estampas lindas, desenhos referentes a Cristo, Nosso Senhor, que está vivo, mais vivo do que nós, ressuscitado e ressuscitante, como sempre diz um dos padres da minha querida Paróquia de São Paulo Apóstolo.
Hoje, 11 de junho, também é véspera de uma data que, comercialmente, leva os casais apaixonados, casados ou não, a trocarem presentes, cartões e flores, a saírem para jantares especiais e, entre juras de amor, celebrarem a romântica data, recordando o dia em que se conheceram, os micos e perrengues que passaram juntos, as manias de cada um, enfim, as particularidades que fazem de cada história de amor uma narrativa única, que clama por sinais sacramentais para que perdure ao longo do tempo - cada uma das pequenas lembranças, registros fotográficos, vídeos, é como que um elemento de acesso ao essencial que precisa sobreviver aos obstáculos e tempestades da vida, as quais, cedo ou tarde, aparecem a fim de pôr à prova o amor.
Hoje, 11 de junho, para mim, é véspera de uma outra data - o dia em que recebi a notícia de que era, a partir daquele instante, mais uma das mulheres a compor as estatísticas de pacientes portadoras de câncer de mama. Era 12 de junho de 2018. Fui a última a ser atendida naquele dia, a conversa com a médica seria longa, não seria justo deixar as outras pacientes esperando. No fundo, já suspeitava que aqueles sintomas não seriam coisa simples de resolver: calor local, vermelhidão e densidade incomum na mama esquerda, que apareceram subitamente, um mês depois de haver realizado exames de imagem que me garantiam não haver nada de anormal ali. Em cerca de dois meses, entre o segundo exame de ultrassom e o diagnóstico, vindo depois de uma ressonância e um procedimento para realização de biópsia, o tumor avançou seus tentáculos, cravando em mim aquela sensação de estar recebendo uma sentença de morte. Porque é exatamente assim que nos sentimos, como se se abrisse um abismo à nossa frente, ou então como se todas as luzes se apagassem e fosse necessário caminhas às apalpadelas, na escuridão.
Meu esposo estava comigo, segurando minha mão, enquanto algumas lágrimas me rolavam de par em par.  Minha mastologista, Dra. Carolina Diógenes, antes de me explicar a bateria de exames necessária ao início do tratamento, olhou-me e disse que havia passado a tarde pensando em como me dar a notícia, até que, atendendo outra paciente, percebeu, num pingente que esta estava usando, a inscrição referente ao Salmo 90. Lembrou-se, então, que era o salmo que havia aprendido com o seu avô e não teve dúvidas: era o que precisava me dizer naquele momento. "Caiam mil homens à tua esquerda e dez mil à tua direita: tu não serás atingido", diz o salmista. Agarrei-me a essas palavras, crendo na promessa que ao final se canta: "Pois que se uniu a mim, eu o livrarei; e o protegerei, pois conhece o meu nome. Quando me invocar, eu o atenderei; na tribulação estarei com ele. Hei de livrá-lo e o cobrirei de glória. Será favorecido de longos dias, e eu lhe mostrarei a minha salvação".
Havia dez meses que havia conhecido a Comunidade Católica São Padre Pio. Como sei que Deus sempre procede com sabedoria, creio que esse tempo foi uma preparação para tudo que eu viria a experimentar ao longo do tratamento. Redescobrir minha fé católica e me encontrar, pessoalmente, com um Jesus que até então eu não conhecia, em momentos de adoração, retiros, missas, formações, vivência realmente da fé, foram o combustível para que eu, naquele 12 de junho, ao sair do consultório da médica, acompanhada de meu esposo, não seguisse para casa, mas fosse, antes, à casa de meus pais, comunicar-lhes a notícia, e depois à comunidade, pois estava escalada para cantar no grupo de oração. Família, de sangue ou afinidade, é sempre porto seguro, chão firme onde pomos nossos alicerces.
Não é fácil ouvir que estamos com câncer, mesmo se tratando de um tipo que, cuidado a tempo, tem grandes chances de cura, muito embora quando se fale em câncer de mama se esteja falando de uma gama de doenças, cada uma com suas particularidades. Isso a gente aprende com o tempo, até a linguagem técnica dos exames e protocolos, com todas as suas siglas, se torna comum para quem está em tratamento. Naquela ocasião, diante de minha médica, dois pensamentos me vieram à cabeça: vou morrer jovem e não verei meu filho crescer. Porém, agarrada ao salmo que ela me entregava como uma mensagem dos anjos, retomei o fôlego e fui cantar. Era o que podia fazer de melhor naquela noite, em vez de me deixar esmorecer. Sei, é claro, que não faria isso se não fosse a própria mão de Deus me sustentando.
Cantei, cantei, mas nem me lembro mais exatamente das canções. Lembro bem que, enquanto cantava, os olhos fechados, só me sentia levada pelos braços de Jesus, parecia que dançávamos, Ele, eu e uma cruz entre nós. E não é assim que deve ser, estejamos ou não em crise, doentes, sozinhos?... Ouvi certa vez que a cruz é fiel e pontual, sempre chega no exato momento em que precisamos dela para crescermos espiritualmente, porque a dor ensina, mas o melhor ensinamento dela não é a gemer, e sim a cantar. Feliz de quem, em meio às cruzes de cada dia, encontra em Deus motivos para louvar, agradecer e acreditar que nada acontece sem a permissão nem fora do alcance de seu olhar. 
Seu olhar que nos acompanha, apaixonadamente, sua voz que nos fala, constantemente... Ele está ao nosso lado, alegrando-se conosco, chorando as nossas dores e angústias, segurando nossa mão quando o medo se aproxima, exortando-nos quando nossas fraquezas nos ameaçam titubear, confessando-nos, a todo instante, como nos ama e como somos belos quando reconhecemos seu tudo diante de nosso nada. Somos, em tudo, dependentes de Deus. O mundo grita o contrário, perturba-nos com seus discursos de que somos capazes, de que somos invencíveis, de que olhar para nossas imperfeições é ruim e temos que focar apenas nas qualidades, como se tudo o que somos e temos não fosse dádiva de Deus, como se a verdade dita por Cristo - "sem mim, nada podeis fazer" - fosse uma ilusão.
No dia 25 de junho de 2018, estava eu iniciando o tratamento quimioterápico. Foram 15 sessões de quimioterapia, seguidas por uma mastectomia com retirada de linfonodos. Depois vieram 28 sessões de radioterapia e mais um ano de terapia alvo com Herceptin, uma medicação específica para meu caso, já que eu era portadora de uma neoplasia invasiva marcada por um tumor do tipo Her2 +, o que significa que uma proteína responsável pelo crescimento das células no corpo estava em desordem.
No entanto, para minha surpresa e também das médicas que me acompanhavam, em meados do ano passado um outro tumor apareceu, na mama direita. Não uma recorrência, uma recidiva, como se chama na medicina. Mas um outro tumor mesmo, de outro tipo, descoberto numa ressonância magnética e confirmado depois de uma outra biópsia. Assim, nem havia terminado o tratamento do primeiro câncer, já começava a me tratar do segundo. Veio uma outra mastectomia com retirada de linfonodos, o que me deixou com algumas restrições nos braços, mas nada que me impossibilite realizar minhas tarefas cotidianas, apenas tenho que me acautelar mais para não sofrer lesões de natureza alguma. Após a mastectomia, tivemos que enviar o material da biópsia para uma reanálise em São Paulo, pois os médicos suspeitavam de que havia algo a mais, e de fato havia: um outro tumor, fantasma, que não foi visto na ressonância por se tratar de células de outra natureza. Cada dia uma surpresa, pelo menos creio que do coração eu não morro.
Pois bem, depois desse resultado, vieram mais 28 sessões de radioterapia, encerradas no início de março desse ano. Cerca de duas semanas depois, estava eu internada no Hospital Wilson Rosado, para ser cirurgiada: uma histerectomia, necessária para a continuidade do tratamento, e um implante de catéter, já que não poderia ter mais os braços perfurados. Exatamente no dia em que se celebra o Santo Arcanjo Gabriel, o anjo do anúncio da encarnação de Cristo no seio de Maria, estava eu no centro cirúrgico, meio grogue dos efeitos da sedação e da anestesia, mas ouvindo claramente a ginecologista que me acompanha há anos, Dra. Isabelle Cantídio, me perguntar se eu queria ouvir música enquanto os procedimentos eram realizados. Respondi que sim, e ainda lembro de haver perguntado se poderia cantar também, ao que recebi um delicado não. Ainda rio com essa história, como uma pessoa sendo cirurgiada pede para cantar? Só estando sob efeito de drogas mesmo. Não cantei, é claro, mas intimamente passei o tempo todo a cantar as canções que escolhi, todas da irmã Kelly Patrícia, do Insituto Hesed, local que tive a graça de conhecer em março do ano passado, um recanto do céu aqui nesta terra. Quem conhece, sabe do que estou falando.
Passados 19 dias desses procedimentos, retornei à quimioterapia. Já se foram três sessões, faltam três para finalizar e, depois, seguir adiante, com medicações específicas, porém não mais intravenosas. Oro para que Deus me conceda, em sua misericórdia, bom êxito nesse tratamento, para que eu possa, um dia, ouvir de meus médicos um sonoro e abençoado "acabou", mas oro, principalmente, para que meu coração não se afaste de quem, em todo esse tempo, me tem ensinado que a melhor canção e o melhor credo nascem de um coração que, pouco a pouco, vai aprendendo a louvar em todas as circunstâncias, vai aprendendo a se conhecer - porque é impossível se aproximar de Deus sem que nos aproximemos de nós mesmos, Ele é perito em nos revelar a verdade, Ele que nos conhece no mais íntimo de nós - e vai aprendendo a se abandonar à sua vontade. Todo o esforço de nossas vidas deveria ser no sentido de nos unir à vontade de Deus e deixar que ela prevaleça, nós que tanto teimamos em fazer as coisas de nosso jeito e a nosso tempo, até o dia em que Ele nos mostra que não é bem assim.
Amanhã, 12 de junho de 2020, fará dois anos que estou em tratamento. Venci o primeiro câncer e, com a graça de Deus, hei de vencer o segundo. Com fé, paciência, perseverança, gratidão e alegria no coração, alegria que ninguém rouba porque vem da própria fonte da vida. Com tudo isso e mais a companhia de todos que eu amo: meu marido, meu filho, toda a minha família e meus amigos que gentilmente se lembram de mim, mandando-me mensagens, ligando-me, orando por mim.
E hoje, dia 11 de junho, dia de Corpus Christi, assistindo em casa, por meio das redes sociais, o trajeto do Santíssimo Sacramento pelas ruas de minha cidade, sem tapetes  coloridos para honrar sua passagem, eu só pude agradecer pela sua companhia em cada momento que passei, pedindo para que possa honrar e glorificar seu nome com minha própria vida. Bem que eu gostaria, eu e muitos católicos, de estar numa bela aglomeração, vendo de pertinho o Senhor, ofertando-lhe flores, mas o momento atual exige que fiquemos em casa. Mas de casa, de qualquer lugar, é possível ofertar as melhores flores de nossa vida a Ele, seja cantando, preparando uma refeição para os nossos, limpando a casa, realizando qualquer atividade. A todo instante, podemos estar em oração, ainda que ocupados com nossos afazeres.
Quero terminar dizendo que nada é mais real do que essa presença velada, escondida, no meio de nós. Nada é mais real do que crer que, sejam quais forem as circunstâncias, nunca estamos sós. Em outras oportunidades, escreverei sobre algumas histórias e vivências desse tempo. Agora, já é hora de descansar das lides do dia, entregar ao Senhor o que hoje vivi e repousar na certeza de que seus olhos me olham e de que a manhã que Ele já prepara me chegará cheia de esperança, de beleza e de novas canções por cantar.





Kalliane Amorim
 

Um comentário:

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