segunda-feira, 31 de julho de 2017

Sobre o encantamento da palavra em Mia Couto

Domingo desses, amanheci com uma mensagem linda de uma ex-aluna, leitora e amiga:

"Achei esse seu projeto tão lindo, tão inspirador [...], chega dá vontade de tomar uma partezinha do seu entusiasmo e de ler e escrever com o seu pensamento. Quando você fala das cartas de Kahlil e Mary, parece que me vejo diante dos poemas de Vicente Huidobro e Mario Benedetti. São tão lindos que dá vontade de espalhar para todo mundo ler."

É uma felicidade sem tamanho essa que a leitura nos proporciona de ir tecendo uma verdadeira rede, na qual cada fio simboliza uma história, um poema, um livro, que, entrançados a outros fios, vão se estendendo ao infinito. Compartilhar nossas leituras é um ato de amor: amamos as palavras e os mundos por ela criados, queremos que todos vejam a sintam a beleza, o impacto, a emoção, e todas as sensações suscitadas pela leitura. Queremos semear no outro uma parte de nós.

Como uma leitura puxa outra leitura que puxa outra leitura, a mensagem de Mikaelli, domingo de manhã, reportou-me ao ano de 2014, quando lecionava na turma do terceiro ano do curso de Biocombustíveis, da qual ela fazia parte. Estávamos estudando o gênero romance e, para não ficarmos apenas em teorias literárias, obviamente partimos para a leitura. A turma, organizada em pequenos grupos, foi envolvida em várias tarefas que compunham uma gincana literária: havia desfile de personagens, montagem de trilha sonora para as narrativas, entrevistas com autores, panfletagem, entre outras. As tarefas eram realizadas em datas previamente marcadas com os alunos, porém toda semana, num dia específico, cada grupo tinha que me entregar o seu diário de leituras coletivo. Era minha primeira experiência conduzindo atividades com diários – tenho pensado seriamente em torná-los virtuais, nas próximas vezes, mas isso é assunto para outra hora.

Resultado de imagem para mia couto um rio chamado tempoUm dos livros sugeridos foi o romance Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. O primeiro obstáculo era a inexistência da obra na biblioteca para que os alunos tivessem acesso. Embora hoje se leia em tudo quanto é suporte, ainda creio que o contato com um livro físico tem lá sua magia, seu encantamento, seu aconchego. Então, foi o jeito dizer aos alunos que sim, eles teriam que ler a história de Marianinho no computador ou no celular, em arquivo no formato PDF. E eles leram. Inicialmente, uma certa dificuldade, as invenções poéticas da prosa de Mia e mesmo o vocabulário típico do português moçambicano foram as pedrinhas no meio do caminho. Mas nada que a boa vontade e a curiosidade sobre o remetente das misteriosas cartas que o protagonista recebia não resolvessem.


A trama de Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra gira em torno da indefinível morte de Dito Mariano, a qual obriga seu neto Marianinho a retornar à ilha de Luar-do-Chão, local onde vivera sua infância e do qual tinha partido após a morte de sua mãe. Esse caminho de volta se constituirá, na trajetória de Marianinho, um retorno às suas raízes, ao seu povo, uma viagem para o interior de sua própria história de vida, tão cercada de segredos e verdades inventadas. Cada capítulo é antecedido de uma frase, um ditado, de alguma das personagens que povoam a narrativa. E logo nas primeiras linhas, a história contada pelo neto – o porta-voz dos Malilanes (ou Marianos, como ficou sendo chamada a família após a influência da língua portuguesa – lembremos que o contexto é a África lusitana) – deparamo-nos com passagens que já nos levam a profundas reflexões:

"A morte é como o umbigo: o quanto nela existe é a sua cicatriz, a lembrança de uma anterior existência. A bordo do barco que me leva à Ilha de Luar-do-Chão não é senão a morte que me vai ditando suas ordens. Por motivo de falecimento, abandono a cidade e faço a viagem: vou ao enterro de meu Avô Dito Mariano.
Cruzo o rio, é já quase noite. Vejo esse poente como o desbotar do último sol. A voz antiga do Avô parece dizer-me: depois deste poente não haverá mais dia. E o gesto gasto de Mariano aponta o horizonte: ali onde se afunda o astro é o mpela djambo, o umbigo celeste. A cicatriz tão longe de uma ferida tão dentro: a ausente permanência de quem morreu. No Avô Mariano confirmo: morto amado nunca mais para de morrer."

Imaginem receber a notícia de que um avô a quem muito se ama está morrendo. Estar morrendo e morrer, na fala do Tio Abstinêncio, são a mesma coisa. Marianinho se perturba com a visita inesperada de seu tio, que há anos não colocava o pé fora de casa. À medida que o barco avança em direção à ilha, o jovem tenta se convencer de que bem poderiam tê-lo deixado lá, na cidade, com suas ocupações de estudante universitário. Pensa no seu pai, Fulano Malta, ex-guerilheiro de alma sensível, com quem tinha uma relação complicada – dá para notar logo no começo da narrativa que os dois têm contas a acertar; pensa no tio Ultímio, o último dos filhos, envolvido na política e distante da família, ávido por riquezas e posição social; pensa no tio Abstinêncio, ali a seu lado, envergado dentro da própria escuridão – pele e roupa escura, fechado em si mesmo, só sairia de casa mesmo por motivo mais que importante, fatal. E assim foi. Mas foi contra a própria vontade, que a tradição mandava ser o filho mais velho a fazer as honras fúnebres do pai. A mando de Dito Mariano, que expressara muito antes este desejo, Abstinêncio vai à procura do sobrinho: ele quem deveria conduzir o funeral. A presença de Marianinho torna-se, então, um conflito naquela família: como pode ser o neto a plantar o avô (em Luar-do-Chão, não se diz enterrar, mas plantar o falecido), ainda mais um neto que estava distante da ilha e de toda a tradição?

Rondam esse retorno de Marianinho inúmeros mistérios: a tarja preta que não parava de crescer na roupa de tio Abstinêncio, a cega e meio vidente Miserinha que lança seu lenço de todas as cores no rio para proteger o rapaz, o gato que farejava as moças disponíveis e levou Dito, nos tempos de namoro, à sua Dulcineusa, as cartas que aparecem e desaparecem sem explicação, a terra que não se abre para receber o corpo de Mariano. A cada capítulo, as relações entre as personagens vão se imbricando mais e mais, o que dá ao romance ares de novela: o que vai acontecer nas próximas cenas? O que sabemos é que aquela Nyumba-Kaya – expressão que significa "casa-casa", escolhida para agradar aos familiares da parte sul e da parte norte da ilha (por aí já imaginamos os conflitos!) – guarda segredos os mais diversos. E é uma delícia ir lendo e desvendando-os pouco a pouco, junto às personagens maravilhosas criadas por Mia.

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O escritor moçambicano Mia Couto
Na primeira vez em que li o romance, tentei fazer o que tenho costume nas minhas leituras: destacar as passagens que mais dialogam com minhas vivências, que mais me chamam atenção pelas reflexões que suscitam ou pela beleza na escolha das palavras e nos sentidos que delas emergem. Percebi que seria quase uma tarefa inútil: a expressão poética, metafórica, das palavras de Mia, exala seus perfumes inebriantes em todas as páginas, de modo que não se pode dizer qual trecho é mais bonito, mais significativo, mais emblemático do tema de que ele trata na obra. 

Falar sobre a morte é sempre falar da vida e suas dores e alegrias. Assim, à medida que os mistérios vão sendo desvendados, percebemos o quanto a personagem central, Marianinho, vai crescendo em profundidade na sua relação com a avó, com os tios e tias, com o povo da ilha. Em vários momentos, nós, leitores, vamos nos identificando com as histórias dos Marianos, afinal família só muda mesmo de endereço. Não vou mencionar tudo que achei bonito nessa narrativa que já é um clássico no meu cânone particular, mas gostaria de compartilhar alguns trechos que, pelo menos para mim, são muito significativos:

"A grande casa está defronte a mim, desafiando-me como uma mulher. Uma vez mais, matrona e soberana, a Nyumba-Kaya se ergue de encontro ao tempo. Seus antigos fantasmas estão, agora, acrescentados pelo espírito do falecido Avô. E se confirma a verdade das palavras do velho Mariano: eu teria residências, sim, mas casa seria aquela, única, indisputável."

"[...] quem parte de um lugar tão pequeno, mesmo que volte, nunca retoma."

"O bom do caminho é haver volta. Para ida sem vinda basta o tempo."

"E explicava: dormir com alguém é a intimidade maior. Não é fazer amor. Dormir, isso é que é íntimo. Um homem dorme nos braços de mulher e a sua alma se transfere de vez. Nunca mais ele encontra suas interioridades."

"Lá fora, a vida desfilava, impávida. Injustiça é o mundo prosseguir assim mesmo quando desaparece quem mais amamos."

"A dor pede pudor. O sofrimento é uma nudez - não se mostra aos públicos."

"Infelizmente, os ilhéus eram tão pequenos que apenas queriam ser como os grandes."

"Miserinha exclama: como estamos doentes, todos nós! Era ela que estava vendo sombras? Ou seriam os demais que já nada enxergavam, doentes dessa cegueira que é deixarmos de sofrer pelos outros?"

"Os lugares não se encontram, constroem-se."

"A saudade é uma ferrugem, raspa-se e por baixo, onde acreditávamos limpar, estamos semeando nova ferrugem."

"Afinal, a maior aspiração do homem não é voar. É visitar o mundo dos mortos e regressar, vivo, ao território dos vivos."

Muitas outras temáticas vão permeando a narrativa de Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, desde questões políticas, como o processo de independência das colônias portuguesas na África, até questões sociais, como a condição da mulher na sociedade. Mas é a trama em redor das memórias de família e da morte como acontecimento que pode nos trazer de volta à vida, que vai tecendo o fio condutor da história de Marianinho e sua Luar-do-Chão. Uma linda reflexão sobre a casa como espaço de memória e a família como "lugar onde somos eternos".

Até a próxima!


Kalliane Amorim
P.S.: Mikaelli, venha compartilhar suas leituras de Vicente Huidobro e Mario Benedetti aqui no blog. Não é um pedido de amiga, é uma intimação de professora!

sexta-feira, 21 de julho de 2017

Sobre as cartas de Kahlil Gibran e Mary Haskell - parte 2

Passo as mãos sobre a capa de O grande amor do profeta: as cartas de amor de Kahlil Gibran e Mary Haskell e o seu diário particular, sinto-lhe a textura, abro-o e folheio as primeiras páginas... Vêm à mente as palavras de Clarice: não era uma menina e um livro, era uma mulher e seu amante. Sinto-me assim, ao pousar os olhos na correspondência deles dois. A leitura dessas cartas opera o milagre da ressurreição. Estão ambos tão perto de mim, tão vivos! Imagino-lhes as mãos escrevendo as missivas, imagino-lhes a voz tratando-se por "minha querida Mary" e "meu adorado Kahlil". Amo-os, como a amigos próximos. Amigos a quem desejo descobrir e com os quais desejo aprender, porque o que é a amizade senão essa vontade de partilhar a vida à medida que se escala a montanha da sabedoria? Amigo é para rir, para chorar, para ralhar, para crescer, para brigar e fazer as pazes, para contemplar o eterno no transitório sobre o fio delicadíssimo da existência.

Fico pensando comigo: Kahlil e Mary guardaram essas cartas pelo que representavam um para o outro. Em várias passagens, eles comentam que as reliam quando ficavam um tempo mais longo sem se corresponderem: ao ler, trazemos quem amamos para perto de nós. Cartas e diários, guardados em caixas e gavetas durante uma vida inteira, provas da tessitura de uma relação que só pertencia a eles dois – a existência e importância de Mary na obra de Kahlil só veio à tona depois que a correspondência tornou-se pública, mais de quarenta anos após a morte do escritor e pintor. Em momento algum, Haskell quis aparecer como merecedora de algum tipo de honraria pelos benefícios que seu apreço e seu conhecimento das artes operaram na produção artística de Gibran. Manteve-se no silêncio, como sempre preferiu. Mas por que, tendo morrido aquele homem a quem amara tão profundamente, ela decide que as cartas deveriam, sim, ser publicadas?

Na abertura do livro, uma possível explicação. Foi ao lado de Barbara Young, biógrafa de Kahlil, que a caixa com as cartas foi encontrada, no estúdio de Gibran. Durante anos, Barbara conviveu com o escritor e nunca soube da relação mais íntima entre os dois. Quando estavam organizando os pertences de Gibran, eis que descobrem a caixa, cuidadosamente escondida. Mary acreditava que ele não tinha preservado as correspondências, já que lhe recomendara, inclusive com insistência, que fossem queimadas, pois poderiam surgir mal-entendidos. Mary, que a princípio concordara, resolveu desistir da ideia, porém nada comunicou ao amigo. Agora, diante do tesouro, devia se sentir emocionada, vendo que ele atribuíra às cartas o mesmo significado que ela deu às dele.

"Mary achou que tanto suas cartas quanto as de Gibran pertenciam a um futuro que preservaria a memória do artista como ela o fizera, e levou consigo a coletânea, conservando-a na casa de Savannah, na Geórgia, onde passou os últimos anos de sua vida."

Levou-as consigo e reuniu-as ao seu diário particular, autorizando a publicação para o conhecimento de todos – todos aqueles que, admiradores da obra do libanês, quisessem conhecer sua intimidade, seus pensamentos e sentimentos, descritos nas páginas e mais páginas que mantiveram unidas as duas almas.

Há um tempo em que fantasiamos a figura dos escritores, inventamos para nós um perfil aureolado e intocável dessas criaturas humanas, como se fossem deuses ou, no mínimo, seres diferenciados, num patamar mais elevado de existência. Esquecemos que eles dormem e acordam, adoecem e se preocupam, têm manias e defeitos, como qualquer outra pessoa. Esquecemos que nem sempre aquilo que escrevem reflete, verdadeiramente, sua índole, seu caráter, suas atitudes em relação aos outros no decorrer na vida.

Quando o tempo de ilusões passa, e conseguimos ver o homem por trás do escritor, passamos a compreender suas lutas, suas conquistas, seu trabalho, suas derrotas, suas paixões... Vemos que a sua humanidade se mostra, sem floreios, ainda mais quando deixa rastros em cartas e diários, esses espaços confidenciais tão almejados pelos olhos dos leitores que encontram tanto encantamento na vida dos seus autores prediletos.

Kahlil e Mary construíram sua amizade lenta e continuamente, uniram suas vidas pelo desejo de se tornarem melhores, e as artes - especialmente a pintura e a literatura - permearam a vida dos dois, ao lado de sua busca por uma espiritualidade enraizada no cotidiano, na vivência com os outros.

Numa das cartas, datada de 23 de junho de 1909, Kahlil, de Paris, escreve a Mary:


"Perdi meu pai, adorada Mary. Ele morreu na velha casa onde nasceu há 65 anos. As duas últimas cartas que escreveu fazem-me chorar a cada leitura. Seus amigos me escreveram, contando que ele me abençoou antes de o fim chegar.
Agora eu sei, querida Mary, que ele descansa nos braços de Deus, e, no entanto,  não posso evitar um sentimento de pranto e saudade. Não posso deixar de sentir a pesada mão da Morte sobre minha testa. Não consigo deixar de ver as sombras difusas e tristes dos dias passados, quando ele, minha mãe, meu irmão e minha irmã pequena viviam e sorriam diante do sol. Onde estarão eles agora? Em alguma região desconhecida? Estarão juntos? Será que se recordam do passado como nós? Estarão próximos deste nosso mundo, ou muito, muito distantes? Sei, querida Mary, que eles vivem. Vivem uma vida mais real, mais bela do que a nossa. Estão mais próximos de Deus do que nós.
O véu das sete dobras não mais se ergue entre os olhos deles e a Verdade. Já não brincam de esconder com o Espírito. Sinto tudo isto, querida Mary, e, no entanto, não consigo evitar a dor do pranto e da saudade.
E você – meu querido e doce consolo – está agora no Havaí, ilhas tão amadas pelo sol. Está do outro lado deste planeta. Seus dias são noites em Paris. Você pertence a outra ordem de tempo. E, apesar disso, está tão perto de mim. Caminha a meu lado quando estou só; à noite, sentamo-nos juntos à mesa, e, enquanto trabalho, conversa comigo.
[...]
Dê lembranças minhas aos vales e às montanhas do Havaí.
Beijo-lhe as mãos, querida Mary; fecho os olhos agora, e é você que vejo, querida amiga.
Kahlil"


Uma carta como essa leva-nos à lembrança dos que já partiram e traz de volta nossas indagações sobre a vida e a morte, essas irmãs siamesas, uma sempre ensinando à outra como devemos conduzir nossos dias a fim de que, um dia, possamos tirar da fronte o "véu das sete dobras". Nesse percurso em que encontramos a finitude tantas vezes, a memória de um amigo pode nos dar conforto, alento, pode ser uma companhia ainda que ausente.

Em 19 de setembro de 1911, Gibran escreve um bilhete à amiga, depois de pegar uma das linhas de navegação que faziam transporte de passageiros de Nova York a Boston, na noite anterior. Nesse bilhete, como também em outras cartas, podemos perceber o quanto o escritor buscava uma ascensão espiritual, na observação do mundo ao redor e das situações vivenciadas por ele, o que de certa forma influenciou a escrita de sua obra mais famosa, O profeta.


"Tive uma noite insone e mística a bordo. Não havia camarotes disponíveis,e  os leitos exalavam um odor de embriaguez, de forma que passei a noite no convés, com as estrelas, a lua brilhante como uma lâmina, e , depois, um maravilhoso alvorecer. A lembrança de uma noite como esta é eterna. A música do mar, envolta num estranho véu de silêncio, e aqueles incontáveis mundos luminosos, navegando mansamente pelo espaço incomensurável, trouxeram-me à mente um milhão de pensamentos elevados.
Kahlil"


Em 6 de maio de 1918, Mary escreve em seu diário o que ouvira de Gibran na noite anterior, a respeito de seu projeto, inicialmente intitulado Conselhos.


"'Sim, eu já venho matutando dentro de mim há algum tempo o grande texto em inglês sobre o qual lhe escrevi. Nos últimos meses, ele se tem desenvolvido e eu dei a partida. Deverá ter 21 partes, e já escrevi 16.'
Kahlil contou primeiramente o prólogo, que ainda não está escrito. Numa cidade entre as planícies e o mar, onde chegam os navios e onde os rebanhos passam nos campos atrás da cidade, um homem erra pelos campos e um pouco por entre o povo. É poeta, vidente e profeta, ama a todos e é por todos amado, mas irradia uma certa solidão. Gostam de ouvi-lo falar, sentem-lhe a beleza e a ternura, mas, no seu amor por ele, jamais se aproximam.
Até mesmo as jovens que se sentem atraídas por sua bondade, não ousam apaixonar-se por ele. E, enquanto as pessoas o consideram como parte da cidade, e gostam de tê-lo lá e de vê-lo a conversar com seus filhos nos campos, há uma consciência de que tudo isto é temporário, de que algum dia ele partirá. E, um dia surge no horizonte um navio, em direção à cidade. Sem que nada seja dito, de algum modo todos sabem que a embarcação vem buscar o poeta eremita.
E, agora que vão perdê-lo, desperta neles o sentimento daquilo que ele representa em suas vidas e todos se reúnem na costa. Ele vem para lhes falar. E um deles diz: 'Fale-nos da Amizade' - e assim por diante. E ele fala sobre essas coisas. 'É acerca do que ele lhes diz que tenho escrito'.
[...]
'Não estou tentando escrever poesia. Procuro expressar pensamentos. Quero o ritmo e a palavra de tal forma que não sejam percebidos, mas que simplesmente penetrem como a água no tecido, e que o pensamento seja aquilo que fique registrado.'
[...]
'Reparou como estas coisas estão plenas daquilo que dissemos em nossas conversas, há alguns anos?', comentou Kahlil.
'Nelas, nada existe que não se tenha originado de nossas conversas. Falar com você sobre elas fez com que se tornassem claras para mim.'
[...]
Quando ele descreveu o poeta eremita dos Conselhos e a relação entre ele e as pessoas da cidade, era uma descrição fiel do modo com que as pessoas reagem em relação a ele. E ele o expressou com fidelidade e domínio total. As palavras eram justas e adequadas. É algo de solene e de inacreditável olhar nos seus olhos e ouvi-lo dizer, como um poema, aquilo que lhe vai no interior. As palavras parecem pequenas ondas num mar de solidão, sob céus imensos."


Se pudesse, compartilharia aqui todas as cartas, e cada um poderia se deleitar com as palavras trocadas entre Mary e Gibran. Porém as mãos já se cansam de digitar, e o melhor a fazer, para quem desejar ler as cartas, é se aventurar numa saga como a minha para encontrar o livro a um preço acessível. Já disse, emprestar eu não empresto, porque tenho ciúmes. Mas posso fazer a delicadeza de vez por outra postar uma cartinha deles ou um trecho do diário dela.


Até a próxima!


Kalliane Amorim

quinta-feira, 20 de julho de 2017

Sobre as cartas de Kahlil Gibran e Mary Haskell

Confesso que um dos motivos que me fizeram começar este diário de leituras foi a saga que envolveu meu contato com o escritor libanês Kahlil Gibran. A trama, com fios de música, cores de filosofia e muita prosa poética, me levou até o livro O grande amor do profeta: as cartas de amor de Kahlil Gibran e Mary Haskell e o seu diário particular, em sua primeiríssima edição, de 1972, publicada pela Record, que, à época, ainda era somente uma distribuidora. A edição que me chegou às mãos, revista e organizada por Virginia Hilu, com tradução de Valerie Rumjanek, foi restaurada cuidadosamente, o que dá para perceber pelo corte feito nas bordas das páginas sem atingir o texto e pela capa dura em verde musgo, em cuja lombada se lê o título principal, letras douradas em baixo relevo. 







Quase não acreditei quando vi a preciosidade! Meu filho, de 4 anos, me olhou surpreso e perguntou se eu estava emocionada por causa do livro. Disse que sim, que amava os livros e que aquele era um livro muito, muito, muito especial. Acho que meu rosto estava iluminado, olhando o livro e olhando para Júnior, que voltara do trabalho com o presente depois de muito garimpar nos sebos virtuais que existem espalhados pela rede, para nossa alegria!


Mas vamos começar do começo, do dia em que vi um vídeo da canção Hypnosis, escrita e interpretada por Damien Rice, que se inspirara na obra O profeta, de Kahlil Gibran. Aqueles versos, falando sobre autoconhecimento, tendo ao fundo as imagens de um longa-metragem em animação, também baseado na obra, foram os primeiros elos que me levaram até O grande amor do profeta.











Na canção, Damien exprime com maestria a essência filosófica e espiritualizada da prosa poética de Gibran. Dois dos trechos que acho mais tocantes são:

When you know who you are
the darkness, the light
love loves it all
cause love has no fight
[...]
When your ears are your words
the silence can always be heard

São tocantes para mim porque falam de dois momentos que, fisgados que fomos pelas iscas da modernidade, constantemente tememos: o momento de silenciar e o momento de amar. Silenciar não apenas no sentido de calar a voz, mas calar o interior para ouvir a grande voz, que nos fala das coisas perdidas, esquecidas, deixadas ao fundo das gavetas, nos interstícios da memória, coisas que são com frequência abafadas e caladas no turbilhão de vozes que ouvimos a todo instante, nós que tantas vezes nos apavoramos com a ausência de sons. E amar não somente com sentimentos e sensações, mas com consciência, como fruto de uma decisão, que exige de nós o melhor que podemos dar, o que pressupõe cuidado, rega e poda.

 Porque assim como o vosso amor
vos engrandece, também deve crucificar-vos

E assim como se eleva à vossa altura

e acaricia os ramos mais frágeis

que tremem ao sol,
também penetrará até às raízes
sacudindo o seu apego à terra.

Como braçadas de trigo vos leva.
Malha-vos até ficardes nus.
Passa-vos pelo crivo
para vos livrar do joio.
Mói-vos até à brancura.
Amassa-vos até ficardes maleáveis.

Então entrega-vos ao seu fogo,
para poderdes ser
o pão sagrado no festim de Deus.

Tudo isto vos fará o amor,
para poderdes conhecer os segredos
do vosso coração,
e por este conhecimento vos tornardes
o coração da Vida.


Depois de ouvir a canção de Damien, procurei O profeta. Baixei-o em PDF no celular e lia sempre que podia. Ao ler, descobri que já o conhecia pelos excertos mais famosos que vez por outra aparecem em mensagens nas redes sociais: os capítulos que versam sobre o amor e sobre os filhos. Lindos, como todo o livro. Lindos e profundos, extremamente simbólicos, concisos e profundos, reveladores de um autor que, no mínimo, buscava muito crescer espiritualmente, tendo como fundamento a mística oriental. 

Fui sendo pouco a pouco conquistada pelo libanês, mais ainda quando, certo dia, encontrei no YouTube as palestras da professora de filosofia Lúcia Helena Galvão, que comenta, capítulo a capítulo, os ensinamentos de Al Mustafá ao povo de Orfalese. Em todas as palestras, a professora fala, inicialmente, sobre o autor e sobre a concepção da obra que o tornou conhecido mundialmente, muito mais do que as telas que pintava. Na trajetória de vida de Gibran, uma mulher, dez anos mais velha, tornou-se sua amiga e confidente: Mary Haskell. 







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Desde que se conheceram, no dia 10 de maio de 1904, no estúdio de Fred Holland Day, um fotógrafo muito famoso em Boston, Gibran, então com 21 anos, e Mary, com 31, selaram uma amizade que duraria até o ano da morte do escritor, em 1931. 







Foram 23 anos de troca de cartas em 27 de estima mútua. Embora houvessem os dois manifestado o desejo de se casarem, a decisão de Mary – decorrente não apenas da crença de que a diferença de idade se tornaria um obstáculo à vida dos dois, mas também do fato de perceber o quanto Gibran poderia alcançar em sua trajetória artística, estando livre de qualquer compromisso matrimonial – foi manter uma amizade duradoura, em vez de "estragá-la por causa de um romance barato".

Quando ouvi que existia um livro com as cartas de Gibran e Haskell, comentei com Júnior, e, em poucos dias, uma mensagem faz meu celular vibrar. Olho. É o arquivo das cartas em PDF, uma versão traduzida por Paulo Coelho, mas tão curtinha, tão condensada, com tão poucas cartas! Li rapidinho o livro, mas o que eu queria mesmo era o volumão grosso com as 615 cartas – 325 de Gibran e 290 de Haskell. Descobri, para minha infelicidade, que as originais encontram-se na Biblioteca da Universidade da Carolina do Norte. O livro organizado por Virginia Hilu não continha todas as cartas. Mesmo assim, lá fui eu procurar na web um exemplar perdido da edição. Encontrei vários, em inglês, alguns dos quais datados de 1972, ano da primeira edição. O preço? Altíssimo para minhas parcas economias. Alguns livreiros cobravam cerca de 500 dólares pelo volume. Obra rara, obra cara. Eis uma verdade!

Voltei no tempo e me lembrei de meu tempo de estudante na graduação em Letras. Vontade imensa de comprar livros, e nenhum tostão no bolso para adquiri-los. Contente-se com a biblioteca da universidade, ora! Eu me contentava, em parte, porque os livros que eu queria estavam na livraria, exibidos nas gôndolas e estantes, muito distantes de minha posse...

Enfim, passaram-se dias, deixei a procura de lado, conformada que estava em saber que jamais poderia ter em mãos O grande amor do profeta. Quase esquecia de dizer! Ainda pesquisei em bancos de dados de várias bibliotecas estrangeiras, na esperança de acessar o livro virtualmente. No site de uma biblioteca australiana, consegui ler somente algumas páginas, já que não disponibilizavam a obra integralmente. Questões legais envolvidas...

Bom, quando já me esquecia da possível sensação de prazer que tomaria conta de mim ao ter em mãos um exemplar do livro, Júnior olha pra mim rapidamente – estávamos no trânsito – e me confessa que, sabendo de minha ansiedade, havia decidido me contar que sim, encontrara o livro, em português, edição de 1972, num sebo no Rio de Janeiro. E por que na minha busca eu não tinha encontrado? Simplesmente porque eu só digitava o título em inglês! Só por isso!

E aí? Comprou o livro? Comprei. Quanto foi? Adivinhe! Não foi 500 dólares, com certeza! Não... Quanto? V-i-n-t-e-e-c-i-n-c-o-r-e-a-i-s!!! C-o-m-f-r-e-t-e!!! Só não caí porque já estava sentada, mas pensei, imediatamente, no dia em que ele ia chegar.

Esperar pelo livro me mostrou que estou conseguindo administrar minha ansiedade. O que é muito bom, cada coisa em seu tempo e tudo a contento!

Agora ele está aqui, em minhas mãos, sob os meus olhos, cercado de cuidados e, depois da leitura, devidamente colocado num cantinho especial na nossa estante de livros. Quando o finalizar, vou querer ler outros de Kahlil Gibran. E quem sabe, um dia, não estejamos nós vendo de perto as pinturas dele, os objetos pessoais, os manuscritos, no Gibran's Museum, em Bsharri, no Líbano? Fetiche? Fetiche, sim. De leitora apaixonada.


Na próxima postagem, compartilho fotos do livro e algumas das cartas. Não vou reter comigo algo tão belo e precioso - ah, mas emprestar, eu não empresto, não! Tenho ciúmes!






Detalhe: No vídeo, a professora Lúcia fala em 1.200 cartas, 600 de Gibran e 600 de Haskell. No entanto, a nota da organizadora Virginia Hilu, logo na abertura do livro, fala em 325 cartas dele e 290 dela, totalizando 615 cartas. Algumas, de cerca de 18 páginas, foram reduzidas a 2 apenas, tendo em vista os propósitos da edição, que giravam em torno da divulgação da amizade e do amor que havia entre ambos. Assim, muitas passagens, julgadas desnecessárias, foram suprimidas. As cartas originais, como mencionei, estão nos arquivos da Biblioteca da Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos.

Sobre retalhos, palavras e diários


Filha de costureira, ficava horas ao pé da máquina de minha mãe, catando no chão os retalhos de tecido coloridos para fazer roupas de boneca. Linhas e mais linhas se entrelaçavam às minhas mãos e pernas – algodão fino, pesponto, seda... Fiapos de texturas diversas grudavam nas minhas roupas – linho, crepe, viscose, organza... Botões de inúmeras formas e cores, alguns transparentes, outros nacarados... Rendas e gripis, fivelas e miçangas, acessórios os mais variados para o acabamento das peças que minha mãe cortava e costurava horas a fio em sua máquina Singer, em cujo pedal seu pé direito marcava o ritmo da minha infância...

Cresci ouvindo o barulho dessa máquina no quartinho que ainda hoje está lá, do lado esquerdo da cozinha, como espaço exclusivo daquela que me deu à luz, dona Apolônia. Ela aprendeu o ofício muito jovem, com minha avó Eulira, na Camponesa, minha Pasárgada real dos tempos de menina. Aos doze anos de idade já sabia costurar, atividade que exerceu até bem pouco tempo, quando os discos de sua coluna teimaram em ficar na posição de zigue-zague definitivamente e não mais a deixaram fazer mágica com linhas e tecidos.

O vocabulário da costureira impregnou-se em minha língua desde cedo. Mas mainha nunca quis que aprendêssemos, eu e minha irmã, a costurar o que quer que fosse. Com muita insistência, consegui aprender a enfiar linha na agulha e dar nó deslizando o indicador no polegar, fazendo aquele pequenino tufo que ninguém consegue desalinhar. Com mais impertinência, consegui aprender a pregar botão, a fazer fuxico, a bordar em ponto-cruz – o que devo à minha prima Daiany – e a pintar alguma coisa com tinta de tecido. Não mais do que isso. "Não quero que vocês sejam costureiras, têm que estudar pra ser alguém na vida!", era o discurso corrente lá em casa.

Assim o fizemos, pois quem é que se atreve a desobedecer palavra de mãe? É desobedecer e tudo desandar, de certeza! Estudamos, eu e minha irmã, cada uma seguindo seu caminho. Ela, entre números e teorias administrativas. Eu, entre letras e teorias linguísticas e literárias. Entre palavras e entre linhas. Entrelinhas.

Se muitas vezes ouvia que o estudo poderia livrar o homem de trabalhos pesados, outras vezes me entristecia por começar a entender que "lutar com palavras é a luta mais vã". Eufemismo, pura e simplesmente. O que me entrava pelos ouvidos, na verdade, era um duro e amargo "escrever é perda de tempo". Olhe que isso me incomodou durante anos. Hoje, não mais, não tanto. Devo ter encontrado abrigo e acalanto não só nos livros, que me vieram bem depois ensolarar os dias, mas nas palavras que ouvi, ainda criança, de minha própria mãe, nas histórias que contava, sendo ela e os familiares as personagens centrais, ou de meu próprio pai, seu Dedé, nas canções que inventava, sendo eu a protagonista, em meio ao batuque das suas mãos nas bacias, baldes e tachos sob a sombra da goiabeira, no fundo do quintal.

Meus pais, em sua simplicidade, em sua parca instrução, me levaram ao reino das palavras sem sentir. Quando comecei a ler, lembro bem disso, adorava decorar passagens de livros, páginas inteiras, e ler para eles. Seus olhos brilhavam, também os meus, era o orgulho pela educação que me davam, com as promessas futuras de uma vida um pouco melhor que a deles, naquela batalha diária e suada pelo sustento.

Não costurei retalhos de tecido, porém até hoje teimo em emendar palavras, em procurar o acabamento mais bonito, mais sonoro, a imagem que caia como um vestido sob medida: corte quem souber, costure quem quiser – é um dos ditos de minha mãe. Com as palavras é a mesma coisa: corte quem souber – escolha as palavras criteriosamente, porque escrever é um sucessivo corte; costure quem quiser – depois de feita a escolha das palavras, colocá-las no papel ou na tela é tarefa das mais fáceis.

Sou costureira, de palavras. Tecelã, tramando diferentes urdiduras para aquilo que, penso eu, vai no final ser um reflexo de mim mesma. Uma colcha de inúmeros e coloridos retalhos, das mais diferentes texturas, que vou entrelaçando dia a dia, com o tempo me servindo de linha. Nesse coser permanente, retalhos de outras vozes vão se misturando aos meus, vozes fictícias e vozes reais, amigos de papel e amigos de carne e osso que gostam de amigos de papel... Habitantes de outras paragens, tão íntimos que parecem conhecidos de outras vidas... Habitantes de minha vizinhança, não necessariamente geográfica, todavia de interesses, gente que ama os livros e neles encontra abrigo, alegria, ponte para os mais diversos mundos dentro de cada um...

Faz uns seis anos, alimentei a ideia de manter um blog. Inicialmente, com textos meus, poemas, gênero em que mais me encontro. Comecei. Parei. Depois, além de poemas, pensei em comentar poemas de autores que eu gostava, numa espécie de ensaio despretensioso, que de crítica literária não tenho nada. Sou muito mais amante dos livros do que crítica deles. Comecei. Parei. Tentei insistir postando novamente poemas. Recomecei. Parei de novo.

Até que um dia descobri os diários de leitura, primeiro lendo os livros sobre letramento literário de Rildo Cosson. Resolvi testar com meus alunos e fui, nessa experiência, me apaixonando pouco a pouco pelo gênero. Um diário, daqueles que fazíamos na adolescência, porém diferente em quase todos os sentidos, com exceção de ser um espaço para o relato de experiências pessoais. A intimidade com os caderninhos que recebia de meus alunos, repletos de desenhos e textos escritos à mão com canetas coloridas, dando destaque a trechos de livros que os emocionaram, me levou a utilizá-los como corpus de minha pesquisa de mestrado. A minha urdidura agora se fazia com fios de meus aprendizes: ensinamentos que, assim como uma lançadeira, vão e vêm, num diálogo constante, nunca um monólogo onde minha voz se sentisse soberana.

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Durante a pesquisa, descobri os escritos de Lejeune em O pacto autobiográfico e me encantei com a escrita de si, nos variados gêneros de cunho pessoal, como cartas e diários. O autor define o diário como uma série de vestígios datados que não é forçosamente quotidiana nem regular. O diário é uma rede de tempo, de malhas mais ou menos cerradas...

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Entre as tantas funções de um diário, Lejeune destaca a conservação da memória, o conhecimento de si e a prática da escrita. Ao escrever um diário, terei um rastro atrás de mim, legível, como um navio cujo trajeto foi registrado no livro de bordo... A superfície em que escrevo, seja o papel, tão íntimo e acolhedor, seja a tela de um computador, com sua trama retilínea de megapixels nas vagas virtuais, fará com que eu me olhe com certo distanciamento. Assim, o diário se torna um espaço de análise, de questionamento, um laboratório de introspecção. Por fim, um diário só pode existir quando alguém que gosta de escrever se propõe a fazê-lo. Ao contarmos a nós mesmos na escrita diarista, construímos um corpo simbólico que, ao contrário do corpo real, sobreviverá [...] O diarista não tem a vaidade de se acreditar escritor, mas encontra em seus escritos a doçura de existir nas palavras e a esperança de deixar um vestígio, já que vive no coração humano o desejo permanente da eternidade.

Tudo isso Lejeune fala referindo-se aos diários íntimos, pessoais, mas acredito que se pode dizer o mesmo quando se trata de diários de leitura. Contar a nós mesmos por meio da relação que temos com os livros é, também, uma forma de conservar a memória das imagens e histórias, de conhecer a si mesmo por meio da leitura e de praticar a escrita registrando aquilo que mais nos toca enquanto leitores.

Durante esse processo de pesquisa e escrita de um trabalho acadêmico, pensei que não seria justo exigir de meus alunos a escrita de um diário de leituras sem que eu nunca tivesse experimentado conceber um. Seria o mesmo que lhes pedir para analisar um livro que nunca li. A ideia de um diário meu começava a tomar corpo.  No entanto, pensava eu, a graça de um diário de leitura é o compartilhamento, é a possibilidade de outras pessoas lerem e, quem sabe, se interessarem pelas mesmas leituras que mexeram comigo, que me emocionaram de alguma forma. Quem lê, ama a leitura e ama ainda mais compartilhá-la, ainda que o outro não compreenda o brilho nos olhos e a empolgação que nos toma conta do corpo ao falarmos dos textos que amamos com tanta devoção. Não adiantaria, assim, tomar notas num caderninho. Não me daria por satisfeita.

Por isso, decidi, uma vez mais, reiniciar minhas aventuras num blog, não mais para publicar somente meus poemas nem para analisar obras. Decidi-me por construir o meu diário de leituras, que pode até não se tornar tão diário assim, já que escrever por obrigação, cotidianamente, não me parece algo atrativo – bom mesmo é escrever sem o senso do dever. Estou certa, porém, que será contínuo esse espaço onde a conversa sobre livros – e tudo que se relaciona a eles – se tornará o fio da meada, o fio do carretel de linhas que vai costurar minhas experiências às de quem se propuser a ler meus rabiscos envoltos de amor à leitura e à escrita.


Àqueles que vierem, boas-vindas!


Kalliane Amorim

Ribeira

Quando a Poesia e a Música se encontram, nasce a Beleza. E esta sempre é um caminho de encontro com Deus, se carrega consigo a Bondade e a V...