quinta-feira, 20 de julho de 2017

Sobre as cartas de Kahlil Gibran e Mary Haskell

Confesso que um dos motivos que me fizeram começar este diário de leituras foi a saga que envolveu meu contato com o escritor libanês Kahlil Gibran. A trama, com fios de música, cores de filosofia e muita prosa poética, me levou até o livro O grande amor do profeta: as cartas de amor de Kahlil Gibran e Mary Haskell e o seu diário particular, em sua primeiríssima edição, de 1972, publicada pela Record, que, à época, ainda era somente uma distribuidora. A edição que me chegou às mãos, revista e organizada por Virginia Hilu, com tradução de Valerie Rumjanek, foi restaurada cuidadosamente, o que dá para perceber pelo corte feito nas bordas das páginas sem atingir o texto e pela capa dura em verde musgo, em cuja lombada se lê o título principal, letras douradas em baixo relevo. 







Quase não acreditei quando vi a preciosidade! Meu filho, de 4 anos, me olhou surpreso e perguntou se eu estava emocionada por causa do livro. Disse que sim, que amava os livros e que aquele era um livro muito, muito, muito especial. Acho que meu rosto estava iluminado, olhando o livro e olhando para Júnior, que voltara do trabalho com o presente depois de muito garimpar nos sebos virtuais que existem espalhados pela rede, para nossa alegria!


Mas vamos começar do começo, do dia em que vi um vídeo da canção Hypnosis, escrita e interpretada por Damien Rice, que se inspirara na obra O profeta, de Kahlil Gibran. Aqueles versos, falando sobre autoconhecimento, tendo ao fundo as imagens de um longa-metragem em animação, também baseado na obra, foram os primeiros elos que me levaram até O grande amor do profeta.











Na canção, Damien exprime com maestria a essência filosófica e espiritualizada da prosa poética de Gibran. Dois dos trechos que acho mais tocantes são:

When you know who you are
the darkness, the light
love loves it all
cause love has no fight
[...]
When your ears are your words
the silence can always be heard

São tocantes para mim porque falam de dois momentos que, fisgados que fomos pelas iscas da modernidade, constantemente tememos: o momento de silenciar e o momento de amar. Silenciar não apenas no sentido de calar a voz, mas calar o interior para ouvir a grande voz, que nos fala das coisas perdidas, esquecidas, deixadas ao fundo das gavetas, nos interstícios da memória, coisas que são com frequência abafadas e caladas no turbilhão de vozes que ouvimos a todo instante, nós que tantas vezes nos apavoramos com a ausência de sons. E amar não somente com sentimentos e sensações, mas com consciência, como fruto de uma decisão, que exige de nós o melhor que podemos dar, o que pressupõe cuidado, rega e poda.

 Porque assim como o vosso amor
vos engrandece, também deve crucificar-vos

E assim como se eleva à vossa altura

e acaricia os ramos mais frágeis

que tremem ao sol,
também penetrará até às raízes
sacudindo o seu apego à terra.

Como braçadas de trigo vos leva.
Malha-vos até ficardes nus.
Passa-vos pelo crivo
para vos livrar do joio.
Mói-vos até à brancura.
Amassa-vos até ficardes maleáveis.

Então entrega-vos ao seu fogo,
para poderdes ser
o pão sagrado no festim de Deus.

Tudo isto vos fará o amor,
para poderdes conhecer os segredos
do vosso coração,
e por este conhecimento vos tornardes
o coração da Vida.


Depois de ouvir a canção de Damien, procurei O profeta. Baixei-o em PDF no celular e lia sempre que podia. Ao ler, descobri que já o conhecia pelos excertos mais famosos que vez por outra aparecem em mensagens nas redes sociais: os capítulos que versam sobre o amor e sobre os filhos. Lindos, como todo o livro. Lindos e profundos, extremamente simbólicos, concisos e profundos, reveladores de um autor que, no mínimo, buscava muito crescer espiritualmente, tendo como fundamento a mística oriental. 

Fui sendo pouco a pouco conquistada pelo libanês, mais ainda quando, certo dia, encontrei no YouTube as palestras da professora de filosofia Lúcia Helena Galvão, que comenta, capítulo a capítulo, os ensinamentos de Al Mustafá ao povo de Orfalese. Em todas as palestras, a professora fala, inicialmente, sobre o autor e sobre a concepção da obra que o tornou conhecido mundialmente, muito mais do que as telas que pintava. Na trajetória de vida de Gibran, uma mulher, dez anos mais velha, tornou-se sua amiga e confidente: Mary Haskell. 







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Desde que se conheceram, no dia 10 de maio de 1904, no estúdio de Fred Holland Day, um fotógrafo muito famoso em Boston, Gibran, então com 21 anos, e Mary, com 31, selaram uma amizade que duraria até o ano da morte do escritor, em 1931. 







Foram 23 anos de troca de cartas em 27 de estima mútua. Embora houvessem os dois manifestado o desejo de se casarem, a decisão de Mary – decorrente não apenas da crença de que a diferença de idade se tornaria um obstáculo à vida dos dois, mas também do fato de perceber o quanto Gibran poderia alcançar em sua trajetória artística, estando livre de qualquer compromisso matrimonial – foi manter uma amizade duradoura, em vez de "estragá-la por causa de um romance barato".

Quando ouvi que existia um livro com as cartas de Gibran e Haskell, comentei com Júnior, e, em poucos dias, uma mensagem faz meu celular vibrar. Olho. É o arquivo das cartas em PDF, uma versão traduzida por Paulo Coelho, mas tão curtinha, tão condensada, com tão poucas cartas! Li rapidinho o livro, mas o que eu queria mesmo era o volumão grosso com as 615 cartas – 325 de Gibran e 290 de Haskell. Descobri, para minha infelicidade, que as originais encontram-se na Biblioteca da Universidade da Carolina do Norte. O livro organizado por Virginia Hilu não continha todas as cartas. Mesmo assim, lá fui eu procurar na web um exemplar perdido da edição. Encontrei vários, em inglês, alguns dos quais datados de 1972, ano da primeira edição. O preço? Altíssimo para minhas parcas economias. Alguns livreiros cobravam cerca de 500 dólares pelo volume. Obra rara, obra cara. Eis uma verdade!

Voltei no tempo e me lembrei de meu tempo de estudante na graduação em Letras. Vontade imensa de comprar livros, e nenhum tostão no bolso para adquiri-los. Contente-se com a biblioteca da universidade, ora! Eu me contentava, em parte, porque os livros que eu queria estavam na livraria, exibidos nas gôndolas e estantes, muito distantes de minha posse...

Enfim, passaram-se dias, deixei a procura de lado, conformada que estava em saber que jamais poderia ter em mãos O grande amor do profeta. Quase esquecia de dizer! Ainda pesquisei em bancos de dados de várias bibliotecas estrangeiras, na esperança de acessar o livro virtualmente. No site de uma biblioteca australiana, consegui ler somente algumas páginas, já que não disponibilizavam a obra integralmente. Questões legais envolvidas...

Bom, quando já me esquecia da possível sensação de prazer que tomaria conta de mim ao ter em mãos um exemplar do livro, Júnior olha pra mim rapidamente – estávamos no trânsito – e me confessa que, sabendo de minha ansiedade, havia decidido me contar que sim, encontrara o livro, em português, edição de 1972, num sebo no Rio de Janeiro. E por que na minha busca eu não tinha encontrado? Simplesmente porque eu só digitava o título em inglês! Só por isso!

E aí? Comprou o livro? Comprei. Quanto foi? Adivinhe! Não foi 500 dólares, com certeza! Não... Quanto? V-i-n-t-e-e-c-i-n-c-o-r-e-a-i-s!!! C-o-m-f-r-e-t-e!!! Só não caí porque já estava sentada, mas pensei, imediatamente, no dia em que ele ia chegar.

Esperar pelo livro me mostrou que estou conseguindo administrar minha ansiedade. O que é muito bom, cada coisa em seu tempo e tudo a contento!

Agora ele está aqui, em minhas mãos, sob os meus olhos, cercado de cuidados e, depois da leitura, devidamente colocado num cantinho especial na nossa estante de livros. Quando o finalizar, vou querer ler outros de Kahlil Gibran. E quem sabe, um dia, não estejamos nós vendo de perto as pinturas dele, os objetos pessoais, os manuscritos, no Gibran's Museum, em Bsharri, no Líbano? Fetiche? Fetiche, sim. De leitora apaixonada.


Na próxima postagem, compartilho fotos do livro e algumas das cartas. Não vou reter comigo algo tão belo e precioso - ah, mas emprestar, eu não empresto, não! Tenho ciúmes!






Detalhe: No vídeo, a professora Lúcia fala em 1.200 cartas, 600 de Gibran e 600 de Haskell. No entanto, a nota da organizadora Virginia Hilu, logo na abertura do livro, fala em 325 cartas dele e 290 dela, totalizando 615 cartas. Algumas, de cerca de 18 páginas, foram reduzidas a 2 apenas, tendo em vista os propósitos da edição, que giravam em torno da divulgação da amizade e do amor que havia entre ambos. Assim, muitas passagens, julgadas desnecessárias, foram suprimidas. As cartas originais, como mencionei, estão nos arquivos da Biblioteca da Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos.

6 comentários:

  1. Olá! Agradeço compartilhar a informação do vídeo! Não conhecia. Fiz uma trajetória parecida com a sua. Lúcia Helena, estante virtual... Estou lendo o livro O Profeta em PDF mas já encomendei o físico. Hoje descobri as cartas e também efetuei o pedido. Não tem capa dura, mas espero que o recheio seja igualmente saboroso. Estou publicando comentários na página@podeestrelasestilo (face). Passa lá pra gente comentar essa benção! Bjk Cláudia Machado

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  2. Agradeço a visita! Andei de recesso, mas logo estarei de volta, comentando textos, livros, canções...

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  3. Olá, Monika. As cartas existem, sim, foram reunidas no livro intitulado "O grande amor do profeta: as cartas de amor de Kahlil Gibran e Mary Haskell e o seu diário particular". A edição que eu tenho é de 1972, tradução de Valerie Rumjanek, Editora Record.

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  4. Ahh que demais esse relato! O mundo do Gibran é um local sem volta, é apaixonante!

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