terça-feira, 26 de maio de 2020

Jogos poéticos - A pia - Parte 2

Dando continuidade aos jogos poéticos sobre o tema "A pia", essa nossa companheira inseparável em dias de isolamento social, seguem as produções de outros amigos, integrantes da Confraria Café & Poesia.


PIA

(Vanja Reis)

 

Instável e fria

aquela louça,

do porcelanato

ao anonimato,

no canto quieta, imóvel,

se faz presente,

sequer avalia

a sua serventia.

Seu espaço é gourmet,

do cômodo

faz a sua morada.

 

Da silhueta

em cuba côncava

suas curvas

tão sutis e utilitárias;

e as mãos que a usam

lavam suas impurezas

que se dissolvem

em gestos de delicadeza

na sua rotina diária.

 

Ela  se decompõe

aos prazeres

da limpeza,

da harmonia,

da leveza.

Na esponja e no sabão,

entre espumas,

a lavar os sabores

ali latentes;

a escorrer pela torneira,

a água, fria ou quente,

se esvai pelo ralo;

dia após dia,

dia e noite, noite e dia,

apenas nisso e só isso.

 

Ah!

Enquanto tiver pratos para lavar

menor será a solidão...

 

 

 PIA

(Pe. Manoel Guimarães)

 

Mas, pia...

Falar sobre pia,

Água limpa

E louça suja.

Só vendo...

Não... Só lavando...

E agradecendo.

Porque se a louça tá suja

É porque teve comida pra comer

E água limpa pra lavar.

Privilégio.

Quando tantos não têm louça,

Nem têm água

E não têm pia.

Só fome.

 

 

SENHORA PIA...

(Flávia Arruda)

 

A senhora pia só sabe resmungar, reclama que vive cheia de louça suja, com panelas encardidas, esperando para serem ariadas, copos com restos de sucos e bordas marcadas com batom. No escorredor de inox, a colher de pau partilha divisória com o coador de pano do café, um pouco mais para o lado está a cuscuzeira e a tacha de ferro fundido, usada para fazer tapiocas.

Entabulei um diálogo com a pia, precisaria fazê-la entender a importância de servir uma refeição de qualidade. Separei cada guarnição. Botei os pratos empilhados, recolhi os restos de comida, deixei os copos enfileirados, como numa trincheira, prontos para o ataque de buchas e sabão, juntei os talheres e as panelas, estas, ficaram um pouco mais afastadas. Pedi à senhora pia um pouco mais de compreensão, pois ela teria de ter consciência do seu papel em nossa casa.

Ora bolas, quem já viu uma coisa dessas?

Não era a primeira vez que eu a via amuada, de boca cheia e “esborrotando” sujeiras. Coisa feia! Minha cara, deixe de boca suja, deixe de ser mal agradecida. Quando vais conseguir entender o propósito de encher-te até a tampa? Fazendo-a equilibrar-se em amontoados de louças?

Minha querida, amada e necessária pia, peço-lhe, encarecidamente, que abra sua mente para a representação daquele momento, quando preparava o alimento para a minha família. Prometo recompensá-la. Cada esponjada será em agradecimento ao alimento pensado, feito e partilhado, nutrindo corpos e aquecendo almas com o amor que a cozinha nos permite criar, num laboratório de criação, entre rituais, de pratos, sabores, cores, cheiros, prazeres e devaneios.

Ah, louca louça suja, sua linda! Deixa de piar nessa pia. Afinal, tudo tem uma razão de ser.

 

  

A PIA

(Lázaro Fabrício)

 

A pia,

sob o relento,

a quina quebrada,

recebe a vasilha improvisada,

a ser lavada

a golpes d'água salobra

e enxaguadas pelas lúgubres lágrimas

da mãe aflita,

na agonia de saber que nela só irá

água fervida com açúcar.

É o que há,

garapa,

para alimentar a criança,

naquela noite fria,

de nuvens cendradas

num ciclo que parece sem fim,

um emblemático retrato da fome,

das agruras catalisadas,

penúria pungente

que sem mandar recado chega

da desigualdade escancarada,

pujante, a zombar desvairada...

 

 

 ES (PIA)

(Riz Silva)

 

Depois de encher o “bucho ”,

Que nem sempre é na “godela ”

- Intriga do seu Raí -

Corro e vou lavar as panelas.

 

Aprendi desde pequena

A cuidar da louça suja,

Rendeu-me alguns tapões

Que quase me deixaram surda.

 

Filha de nordestino

Aprende tudo na marra:

Ou o serviço de casa,

Ou o cabo da enxada.

 

Hoje, morando sozinha,

Com liberdade de escolha,

Meu passatempo preferido

É mesmo lavar toda louça.

 

Bem acima da pia

Existe uma janela,

Dela vejo o quintal

E o sol sorrindo pra ela.

 

Eita tarefa tranquila:

Lavar a louça e a pia,

Ver o céu com suas cores,

Enquanto as panelas alumiam.




A PIA

(Ieda Chaves)


Participo de uma confraria cujas pessoas são amigas, alegres, solidárias e incentivam os iniciantes, até os aspirantes, assim como eu, a praticarem a arte literária através da escrita de crônicas e poemas.

A interação desse grupo é tão saudável que somos instigados a escrever a partir de temas sugeridos no espaço do nosso grupo de WhatsApp; sem dúvida, uma forma divertida de estímulo. O tema sugerido neste feriado de 21/04 foi PIA. E eu, para não ficar de fora da brincadeira, tomei coragem de participar.

Quando comecei a ler os poemas, não hesitei, usaria o repertório de saudosismos de minha infância no interior do Nordeste brasileiro, parte morando na zona rural e, depois, na cidade, de onde tiraria o material para a construção de um texto.

Pois bem, em tempos longínquos, nas casas das famílias mais modestas, leia-se menos favorecidas economicamente, as louças eram lavadas não em pia, mas em uma bacia de barro chamada de alguidar, um objeto com forma redonda, feito de barro e polido.

E a partir daí foram muitas as recordações de minhas divertidas iniciativas de aprender a lavar a louça de casa. Explico: por vezes a forma era atrapalhada ao manusear o alguidar, que por ser de barro era pesado e, somado ao volume de água, pesava ainda mais. O resultado é que, como eu era muito franzina, tinha braços finos e pouca força física, ao término da tarefa, no jogar a água suja fora, lá se ia o alguidar junto, espatifando-se no terreiro (quintal). Era certo que além do prejuízo vinham as “ralhas” que levava de meu pai.

Outras vezes era a altura da mesa sobre a qual era posto o alguidar, pois ficava muito elevada para minha pequena estatura; portanto, terminava o serviço com a roupa toda molhada e, nessas ocasiões, era a minha mãe que se incomodava e a minha boa intenção em ajudá-la era minimizada. Mas eu pouco ligava, pois me divertia com a situação.

Após alguns anos, e já morando na cidade, na cozinha da casa tinha pia, de cimento ou de mármore, não me lembro bem desse detalhe, mas o que importa era que a pia cumpria sua função: servir para lavar louças, panelas e utensílios de cozinhar.

Na verdade, a mudança de alguidar para pia mudou pouco a minha habilidade de lavar pratos, pois a torneira era alta e, na maioria das vezes, o chão é que ficava molhado de tantos respingados d’água. Ou seja, foi uma verdadeira saga essa minha vontade de querer aprender a lavar louças.

Ah! Mas o que tirei de proveitoso dessas lembranças foi reconstruir, nas minhas memórias, recordações de um tempo bom, de parcerias familiares, do espírito colaborativo que aprendi e mantenho até hoje.

E, antes mesmo de terminar essa prosa, me lembrei de outro detalhe: naquela época também era comum as pias serem postas em frente a uma janela e, por meio dela, dava para se ouvir o canto dos pássaros vindo dos quintais das casas.

Tenho saudades do que foi bom na minha infância, rica de histórias para contar, pois até hoje conservo, além das lembranças, o esmero no que aprendi a fazer com prazer, sem preguiça ou reclamações, e, entre outras atividades, aperfeiçoei, com tempo, a habilidade para usar a pia sem mais molhar o chão ou minha roupa e, na falta do alguidar e canto de pássaros, uso pias e torneiras modernas e assim lavo a louça ouvindo boas músicas.

Mas, quer saber? Sinto falta mesmo é do canto do sabiá, que me fazia toda louça lavar sem nem ver o tempo passar.


***




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