Dando continuidade aos jogos poéticos sobre o tema "A pia", essa nossa companheira inseparável em dias de isolamento social, seguem as produções de outros amigos, integrantes da Confraria Café & Poesia.
PIA
(Vanja Reis)
Instável e fria
aquela louça,
do porcelanato
ao anonimato,
no canto quieta, imóvel,
se faz presente,
sequer avalia
a sua serventia.
Seu espaço é gourmet,
do cômodo
faz a sua morada.
Da silhueta
em cuba côncava
suas curvas
tão sutis e utilitárias;
e as mãos que a usam
lavam suas impurezas
que se dissolvem
em gestos de delicadeza
na sua rotina diária.
Ela se decompõe
aos prazeres
da limpeza,
da harmonia,
da leveza.
Na esponja e no sabão,
entre espumas,
a lavar os sabores
ali latentes;
a escorrer pela torneira,
a água, fria ou quente,
se esvai pelo ralo;
dia após dia,
dia e noite, noite e dia,
apenas nisso e só isso.
Ah!
Enquanto tiver pratos para lavar
menor será a solidão...
(Pe. Manoel
Guimarães)
Mas, pia...
Falar sobre pia,
Água limpa
E louça suja.
Só vendo...
Não... Só
lavando...
E agradecendo.
Porque se a louça
tá suja
É porque teve
comida pra comer
E água limpa pra
lavar.
Privilégio.
Quando tantos não
têm louça,
Nem têm água
E não têm pia.
Só fome.
SENHORA PIA...
(Flávia
Arruda)
A senhora pia só sabe resmungar, reclama que vive cheia de louça suja, com
panelas encardidas, esperando para serem ariadas, copos com restos de sucos e
bordas marcadas com batom. No escorredor de inox, a colher de pau partilha
divisória com o coador de pano do café, um pouco mais para o lado está a
cuscuzeira e a tacha de ferro fundido, usada para fazer tapiocas.
Entabulei um diálogo com a pia, precisaria fazê-la entender a importância
de servir uma refeição de qualidade. Separei cada guarnição. Botei os pratos
empilhados, recolhi os restos de comida, deixei os copos enfileirados, como
numa trincheira, prontos para o ataque de buchas e sabão, juntei os talheres e
as panelas, estas, ficaram um pouco mais afastadas. Pedi à senhora pia um pouco
mais de compreensão, pois ela teria de ter consciência do seu papel em nossa
casa.
Ora bolas, quem já viu uma coisa dessas?
Não era a primeira vez que eu a via amuada, de boca cheia e “esborrotando”
sujeiras. Coisa feia! Minha cara, deixe de boca suja, deixe de ser mal agradecida.
Quando vais conseguir entender o propósito de encher-te até a tampa? Fazendo-a
equilibrar-se em amontoados de louças?
Minha querida, amada e necessária pia, peço-lhe, encarecidamente, que abra
sua mente para a representação daquele momento, quando preparava o alimento
para a minha família. Prometo recompensá-la. Cada esponjada será em
agradecimento ao alimento pensado, feito e partilhado, nutrindo corpos e
aquecendo almas com o amor que a cozinha nos permite criar, num laboratório de
criação, entre rituais, de pratos, sabores, cores, cheiros, prazeres e
devaneios.
Ah, louca louça suja, sua linda! Deixa de piar nessa pia. Afinal, tudo tem
uma razão de ser.
A PIA
(Lázaro Fabrício)
A pia,
sob o relento,
a quina quebrada,
recebe a vasilha improvisada,
a ser lavada
a golpes d'água salobra
e enxaguadas pelas lúgubres lágrimas
da mãe aflita,
na agonia de saber que nela só irá
água fervida com açúcar.
É o que há,
garapa,
para alimentar a criança,
naquela noite fria,
de nuvens cendradas
num ciclo que parece sem fim,
um emblemático retrato da fome,
das agruras catalisadas,
penúria pungente
que sem mandar recado chega
da desigualdade escancarada,
pujante, a zombar desvairada...
(Riz Silva)
Depois de encher
o “bucho ”,
Que nem sempre é
na “godela ”
- Intriga do seu
Raí -
Corro e vou lavar
as panelas.
Aprendi desde
pequena
A cuidar da louça
suja,
Rendeu-me alguns
tapões
Que quase me
deixaram surda.
Filha de
nordestino
Aprende tudo na
marra:
Ou o serviço de
casa,
Ou o cabo da
enxada.
Hoje, morando
sozinha,
Com liberdade de
escolha,
Meu passatempo
preferido
É mesmo lavar
toda louça.
Bem acima da pia
Existe uma janela,
Dela vejo o
quintal
E o sol sorrindo
pra ela.
Eita tarefa
tranquila:
Lavar a louça e a
pia,
Ver o céu com suas
cores,
Enquanto as
panelas alumiam.
A PIA
(Ieda Chaves)
Participo de uma confraria cujas pessoas são amigas, alegres,
solidárias e incentivam os iniciantes, até os aspirantes, assim como eu, a
praticarem a arte literária através da escrita de crônicas e poemas.
A interação desse grupo é tão saudável que somos instigados a
escrever a partir de temas sugeridos no espaço do nosso grupo de WhatsApp; sem
dúvida, uma forma divertida de estímulo. O tema sugerido neste feriado de 21/04
foi PIA. E eu, para não ficar de fora da brincadeira, tomei coragem de
participar.
Quando comecei a ler os poemas, não hesitei, usaria o repertório
de saudosismos de minha infância no interior do Nordeste brasileiro, parte
morando na zona rural e, depois, na cidade, de onde tiraria o material para a
construção de um texto.
Pois bem, em tempos longínquos, nas casas das famílias mais
modestas, leia-se menos favorecidas economicamente, as louças eram lavadas não
em pia, mas em uma bacia de barro chamada de alguidar, um objeto com forma
redonda, feito de barro e polido.
E a partir daí foram muitas as recordações de minhas divertidas
iniciativas de aprender a lavar a louça de casa. Explico: por vezes a forma era
atrapalhada ao manusear o alguidar, que por ser de barro era pesado e, somado
ao volume de água, pesava ainda mais. O resultado é que, como eu era muito franzina,
tinha braços finos e pouca força física, ao término da tarefa, no jogar a água
suja fora, lá se ia o alguidar junto, espatifando-se no terreiro (quintal). Era
certo que além do prejuízo vinham as “ralhas” que levava de meu pai.
Outras vezes era a altura da mesa sobre a qual era posto o
alguidar, pois ficava muito elevada para minha pequena estatura; portanto,
terminava o serviço com a roupa toda molhada e, nessas ocasiões, era a minha
mãe que se incomodava e a minha boa intenção em ajudá-la era minimizada. Mas eu
pouco ligava, pois me divertia com a situação.
Após alguns anos, e já morando na cidade, na cozinha da casa tinha
pia, de cimento ou de mármore, não me lembro bem desse detalhe, mas o que
importa era que a pia cumpria sua função: servir para lavar louças, panelas e
utensílios de cozinhar.
Na verdade, a mudança de alguidar para pia mudou pouco a minha
habilidade de lavar pratos, pois a torneira era alta e, na maioria das vezes, o
chão é que ficava molhado de tantos respingados d’água. Ou seja, foi uma
verdadeira saga essa minha vontade de querer aprender a lavar louças.
Ah! Mas o que tirei de proveitoso dessas lembranças foi
reconstruir, nas minhas memórias, recordações de um tempo bom, de parcerias
familiares, do espírito colaborativo que aprendi e mantenho até hoje.
E, antes mesmo de terminar essa prosa, me lembrei de outro
detalhe: naquela época também era comum as pias serem postas em frente a uma
janela e, por meio dela, dava para se ouvir o canto dos pássaros vindo dos
quintais das casas.
Tenho saudades do que foi bom na minha infância, rica de histórias
para contar, pois até hoje conservo, além das lembranças, o esmero no que
aprendi a fazer com prazer, sem preguiça ou reclamações, e, entre outras
atividades, aperfeiçoei, com tempo, a habilidade para usar a pia sem mais
molhar o chão ou minha roupa e, na falta do alguidar e canto de pássaros, uso
pias e torneiras modernas e assim lavo a louça ouvindo boas músicas.
Mas, quer saber? Sinto falta mesmo é do canto do sabiá, que me fazia toda louça lavar sem nem ver o tempo passar.
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