Há abismos de silêncio dentro de minha
alma.
Somente o vento que se lança nos
precipícios ecoa:
é a tua voz ruflando as asas,
pousando em meu ombro esquerdo,
sussurrando-me segredos
esquecidos numa caixa
em que dormem meus brinquedos,
meus brinquedos muito pobres,
meus haveres tão escassos...
O sopro de silêncio que chega a ti, Kalliane, traz-nos
não só o ruflar de divinas asas; tais ventanias, de segredos telúricos e vestidos
de precipício, acordam-nos os brinquedos guardados nos recônditos da alma.
Pobres e escassos, são esses brincantes (milagre?, não sei), ofertam-nos a
esmola necessária do abençoado riso.
Enquanto a nova manhã não nos surge, Poetisa, haveremos,
com o peito aberto, de comungar com os misteriosos eflúvios da poética dor,
sina encarnada.
É porque
vens sem que eu te chame,
é porque
me surpreendes
como um
sol ao meio-dia,
inundando-me
de cores,
de
acordes, de poesia.
***
O teu
canto, meu amigo,
é um
punhal de fina seda...
de organza...
de voil...
Retalhando,
mansamente,
o meu mar
interior...
as
areias... os corais...
— Kalliane, o teu mar interior,
vale sertanejo de pretéritos oceanos, dispõe-nos, à praia dos lábios, uma areia
brilhante e um coral por demais alumioso. Mansamente, mergulhamos em tuas versejadas
procelas; e, enquanto o punhal das frias águas rítmicas nos arrepia o espírito,
a alma se confessa extasiada, ao tempo em que mais se dessangra, aflita.
Como dois velhos amigos, (re)descobri que jamais se
esgota um verso de tão fina estampa. De outros poetas, tão ausente.
Varando,
calidamente,
a
noite e este peito ausente
de
si e de tudo o mais...
***
Volvei,
pois,
vossos
luzeiros sobre a grande chama
que
perpassa o rumor das horas,
crepitando
e alumiando, sem cessar,
a
escuridão em que oculteis
de
vós mesmos vossas tramas,
de
tanto, e em vão, pensar.
Tu, Poetisa da Canção Amiga, bem imaginas o quanto
de luz sobra das palavras abandonadas ao rumor das horas, ao lamento não
escutado, ao sussurro de paixão interdito...
Cumula, amiga, nossos passos com teus luzeiros;
eles abrirão os ermos caminhos aos avanços medrosos daqueles que seguem a paz,
contudo temem as garras dos que se ocultam em escuridões vãs.
E, lá fora, aponta teu poema, há um halo de
esperança sob a forma de bendita cruz.
No volver da noite — sem pressa,
balbúrdia ou destempero —, haveremos de suspirar no
amplexo da paz; é que a alegria só nos presenteia (e nos acarinha), quando
ninguém a espera mais, nem tão cedo.
Esvazia-te.
Como se
te cercasses de um deserto,
sem
olhares trêmulos a te mirar.
Como se à
beira do mar dormisses,
e não
viesse o vento te acarinhar.
***
Sim, há algo de sagrado
nesse corpo,
algo que se perdeu
e a muito custo
se quer de volta.
A carne,
sagrada ilusão, é a parte menos divina que há em nós. Apesar de tamanha
certeza, rogamos a Deus por sua eternidade.
Em especial
por ti, filha dos Amorins, dada a pureza de tuas mãos limpas, de teus atos
dadivosos, de tuas palavras-lírios. Estas, a brotarem de uma língua sagrada, a estender
versos de fé por sobre nós, acabrunhados e pedintes da vida. De volta.
Miras, ouves, tocas,
apetece-te o que anda às voltas
de teus passos de neblina e ocaso.
***
Não,
eu sei que não sou digna
de
que adentres tal morada,
com
teu olor de alvorada.
Antes de entrares na casa poética de Kalliane
Amorim, leitor amigo, haverás de limpar tuas mãos com a água benta de uma nova
aurora; não sem antes beijares-lhe os pés dos versos, e, assim, serás digno de
escutares tantas promessas, olores de divina chama. E ficarás em paz, com
Cristo.
— E em Licânia, quem haverá de nos
abençoar?
Em Licânia, Kalliane, ainda não nasceu poetisa para
decifrar tantos mistérios de chaga e luz. Decidi que levarei teus poemas,
sementes candentes, e os plantarei em covas fundas à beira do Rio das Garças.
Garças guardarão, nas ribeiras de aluvião, tantas graças. Amém.
Ando.
A passos
lentos,
porque
lento é meu perdão.
E andam
comigo,
sob o
mais claro algodão
da camisa
que me veste,
minha
ternura inconteste,
contida
dentro do gesto
mais leve
de minhas mãos,
meu
canto, e sua floração
milagrosa
em pleno estio
***
Eu
preciso de memórias
doloridas,
mas fulgentes,
preciso
de rituais
e
ressequidas sementes,
preciso
que me plantem
na
terra urgentemente.
Eis que a ceifeira chegou. Adentra ao
terreno calcinado, passos lentos e de olhos postos no chão desconhecido. De
repente, o olhar de memórias prenhe rebrilha e, num ritual de colheita e
ofertório, recolhe, messe inclemente, o fruto da semente que, para os incréus,
sempre estaria ausente.
Deus, abençoai e protegei as poetisas,
ceifeiras da seara de Tua luz!
Veio
andando vagarosa,
como
se se equilibrasse
sobre
o fio da existência
em
que meu suspiro pasce.
E eu suspiro, e choro, por sabê-la em
sofrimento.
Senhor, afastai da Poetisa esse cálice!
E deixai que o fio de sua augusta existência se estenda — lençol apascentador
—, pelos séculos e séculos, sobre nós.
Se Vós quiséreis, a Vós pediremos,
dividi tal aflição conosco. Assim seja.
Com uma voz melodiosa,
minha dor atravessou
minha rua, meu silêncio,
em meu peito se aninhou.
***
Conduz-me ao lugar
secreto que existe
bem dentro de mim,
descobre a nascente
por entre os entulhos
que ao longo do tempo
vim acumulando,
calando o murmúrio
das águas da vida
que correm sem fim...
Toda poesia é uma fonte de singular brilho.
Toda estrofe certeira é um sol na escuridão plangente da lida.
Ouço a fonte crepitar com teus
murmúrios, Kalliane, e, alumbrado, confesso: cicios-poemas correrão por campos
sem fim.
Por isso, tu que me lês, abre tua
janela, deixa a porta escancarada, lava tua cara maquiada de tanta cisma... e
prepara-te para a comunhão com a Poesia. O verbo remido sempre colore a carne;
em especial, àquela mais suja, pecadora e aflita.
***
No
dorso da noite espero
aquela
barca de silêncio
com
suas velas brancas, longas,
enervadas
pelo vento,
aquela
barca de acalantos
vagueando
sobre o azul
profundo
do esquecimento.
Barqueira silenciosa, do mar azul mais
fulgurante, veleja por entre os profundos esquecimentos, a nos doar o nervo da
fé, enquanto, à volta de todos, impera o acalanto dos indigentes proscritos!
Tua sábia barca haverá de vencer as
ondas altas, pois teu navegar é uma forma de rezar por (e perdoar) todas as
gentes.
Eia,
a humilde dama, entre todas, bendita,
as
mãos ágeis, à terra entrelaçadas,
os
olhos, duas naus no infinito conduzidas...
***
Vem,
mulher bendita, agraciada,
acolhe-nos
sob teu manto de candura
e
recita as promessas da eternidade...
Os tempos estranhos atraem os corvos da
morte; e os homens e mulheres puros, esquecidos da fé milagrosa, entregam-se ao
destino cruento.
Eis que surge, em manto de candura, o
verbo da bendita Poetisa. Com seu recital plácido, espanta de vez todo o mal
que antes se nos avizinhava.
Moral da poesia: poetisa-peregrina assim
ressuscita-nos para uma nova e cândida vida. Relicário de kallianices.
Houve
uma ventania,
vinda
de algum deserto:
seu
flagelo desenfreado
açoitou
todas as portas,
fraturou
as tantas janelas,
desossou
as estruturas
de
minha única moradia.
***
Dessa
luz eu vou colhendo
os
frutos adocicados,
preparando,
em segredo,
as
mais finas iguarias,
para
celebrar a vida, que se doa,
de
presente, todo dia.
De um poema, colhi uma flor. De outro,
ao fim da página, uma estrela azul. Ao fim da parte inicial, celebrei um
presente, celestial iguaria. Em segredo, fartei-me com uma colheita de auroras.
— E quanto ao mal à frente? — Tu me
afliges.
Kalliane, de mãos para os céus, me aliviaria:
“Se amanhã serei, não sei, /não sei de tintas nem melodias /para o que virá, se
virá, /sei que sempre será dia, /sempre será luz /e, mais adentro, calmaria,
/apesar da noite escura, /apesar da ventania, apesar da ventania.”
Ó,
vale de lágrimas!
Ó,
imenso deserto!
Tudo
se desfaz, tudo passa!
Obs.: os trechos em itálico foram extraídos do livro Peregrina, de Kalliane Amorim. — Mossoró: Sarau das Letras, 2020.
*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.
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