segunda-feira, 25 de maio de 2020

Confidências de um grande amigo

Em 31 de março de 2020, recebi do amigo e editor Clauder Arcanjo o texto que se segue, parte de mais um de seus projetos, dessa vez um diálogo com escritores. Havia uma semana que havia sido cirurgiada (a saga contra o câncer de mama continua, em paz e na confiança em Deus), e que belo presente recebi nessas linhas, em que ele teceu um diálogo com os poemas do livro que em breve haverá de sair pela Sarau das Letras, seu selo editorial conhecido pela qualidade e esmero em cada título. Alegro-me de estar em sua lista, não só de escritores, mas de amigos. Há quase dezoito anos nos conhecemos - eu, recém-formada em Letras pela UERN; ele, assinando como Carlos Meireles uma coluna literária, pedagógica e de gestão na qual se via claramente seu amor pelos livros. De lá para cá, quantos sonhos e projetos, quantas lutas e alegrias. Continuemos, que de sonhos são feitos os homens e de realizações, com os amigos, os grandes homens.




CONFIDÊNCIAS A KALLIANE
Clauder Arcanjo*



Há abismos de silêncio dentro de minha alma.

Somente o vento que se lança nos precipícios ecoa:

é a tua voz ruflando as asas,

pousando em meu ombro esquerdo,

sussurrando-me segredos

esquecidos numa caixa

em que dormem meus brinquedos,

meus brinquedos muito pobres,

meus haveres tão escassos...

O sopro de silêncio que chega a ti, Kalliane, traz-nos não só o ruflar de divinas asas; tais ventanias, de segredos telúricos e vestidos de precipício, acordam-nos os brinquedos guardados nos recônditos da alma. Pobres e escassos, são esses brincantes (milagre?, não sei), ofertam-nos a esmola necessária do abençoado riso.

Enquanto a nova manhã não nos surge, Poetisa, haveremos, com o peito aberto, de comungar com os misteriosos eflúvios da poética dor, sina encarnada.

É porque vens sem que eu te chame,

é porque me surpreendes

como um sol ao meio-dia,

inundando-me de cores,

de acordes, de poesia.

 

***

 

O teu canto, meu amigo,

é um punhal de fina seda...

de organza... de voil...

Retalhando, mansamente,

o meu mar interior...

as areias... os corais...

Kalliane, o teu mar interior, vale sertanejo de pretéritos oceanos, dispõe-nos, à praia dos lábios, uma areia brilhante e um coral por demais alumioso. Mansamente, mergulhamos em tuas versejadas procelas; e, enquanto o punhal das frias águas rítmicas nos arrepia o espírito, a alma se confessa extasiada, ao tempo em que mais se dessangra, aflita.

Como dois velhos amigos, (re)descobri que jamais se esgota um verso de tão fina estampa. De outros poetas, tão ausente.

Varando, calidamente,

a noite e este peito ausente

de si e de tudo o mais...

 

***

 

Volvei, pois,

vossos luzeiros sobre a grande chama

que perpassa o rumor das horas,

crepitando e alumiando, sem cessar,

a escuridão em que oculteis

de vós mesmos vossas tramas,

de tanto, e em vão, pensar.

Tu, Poetisa da Canção Amiga, bem imaginas o quanto de luz sobra das palavras abandonadas ao rumor das horas, ao lamento não escutado, ao sussurro de paixão interdito...

Cumula, amiga, nossos passos com teus luzeiros; eles abrirão os ermos caminhos aos avanços medrosos daqueles que seguem a paz, contudo temem as garras dos que se ocultam em escuridões vãs.

E, lá fora, aponta teu poema, há um halo de esperança sob a forma de bendita cruz.

No volver da noite sem pressa, balbúrdia ou destempero , haveremos de suspirar no amplexo da paz; é que a alegria só nos presenteia (e nos acarinha), quando ninguém a espera mais, nem tão cedo.

Esvazia-te.

Como se te cercasses de um deserto,

sem olhares trêmulos a te mirar.

Como se à beira do mar dormisses,

e não viesse o vento te acarinhar.

 

***

 

Sim, há algo de sagrado

nesse corpo,

algo que se perdeu

e a muito custo

se quer de volta.

A carne, sagrada ilusão, é a parte menos divina que há em nós. Apesar de tamanha certeza, rogamos a Deus por sua eternidade.

Em especial por ti, filha dos Amorins, dada a pureza de tuas mãos limpas, de teus atos dadivosos, de tuas palavras-lírios. Estas, a brotarem de uma língua sagrada, a estender versos de fé por sobre nós, acabrunhados e pedintes da vida. De volta.

Miras, ouves, tocas,

apetece-te o que anda às voltas

de teus passos de neblina e ocaso.

 

***

 

Não, eu sei que não sou digna

de que adentres tal morada,

com teu olor de alvorada.

Antes de entrares na casa poética de Kalliane Amorim, leitor amigo, haverás de limpar tuas mãos com a água benta de uma nova aurora; não sem antes beijares-lhe os pés dos versos, e, assim, serás digno de escutares tantas promessas, olores de divina chama. E ficarás em paz, com Cristo.

E em Licânia, quem haverá de nos abençoar?

Em Licânia, Kalliane, ainda não nasceu poetisa para decifrar tantos mistérios de chaga e luz. Decidi que levarei teus poemas, sementes candentes, e os plantarei em covas fundas à beira do Rio das Garças. Garças guardarão, nas ribeiras de aluvião, tantas graças. Amém.

Ando.

A passos lentos,

porque lento é meu perdão.

E andam comigo,

sob o mais claro algodão

da camisa que me veste,

minha ternura inconteste,

contida dentro do gesto

mais leve de minhas mãos,

meu canto, e sua floração

milagrosa em pleno estio

 

***

 

Eu preciso de memórias

doloridas, mas fulgentes,

preciso de rituais

e ressequidas sementes,

preciso que me plantem

na terra urgentemente.

Eis que a ceifeira chegou. Adentra ao terreno calcinado, passos lentos e de olhos postos no chão desconhecido. De repente, o olhar de memórias prenhe rebrilha e, num ritual de colheita e ofertório, recolhe, messe inclemente, o fruto da semente que, para os incréus, sempre estaria ausente.

Deus, abençoai e protegei as poetisas, ceifeiras da seara de Tua luz!

Veio andando vagarosa,

como se se equilibrasse

sobre o fio da existência

em que meu suspiro pasce.

E eu suspiro, e choro, por sabê-la em sofrimento.

Senhor, afastai da Poetisa esse cálice! E deixai que o fio de sua augusta existência se estenda — lençol apascentador —, pelos séculos e séculos, sobre nós.

Se Vós quiséreis, a Vós pediremos, dividi tal aflição conosco. Assim seja.

Com uma voz melodiosa,

minha dor atravessou

minha rua, meu silêncio,

em meu peito se aninhou.

 

***

 

Conduz-me ao lugar

secreto que existe

bem dentro de mim,

descobre a nascente

por entre os entulhos

que ao longo do tempo

vim acumulando,

calando o murmúrio

das águas da vida

que correm sem fim...

Toda poesia é uma fonte de singular brilho. Toda estrofe certeira é um sol na escuridão plangente da lida.

Ouço a fonte crepitar com teus murmúrios, Kalliane, e, alumbrado, confesso: cicios-poemas correrão por campos sem fim.

Por isso, tu que me lês, abre tua janela, deixa a porta escancarada, lava tua cara maquiada de tanta cisma... e prepara-te para a comunhão com a Poesia. O verbo remido sempre colore a carne; em especial, àquela mais suja, pecadora e aflita.

 

***

 

No dorso da noite espero

aquela barca de silêncio

com suas velas brancas, longas,

enervadas pelo vento,

aquela barca de acalantos

vagueando sobre o azul

profundo do esquecimento.

Barqueira silenciosa, do mar azul mais fulgurante, veleja por entre os profundos esquecimentos, a nos doar o nervo da fé, enquanto, à volta de todos, impera o acalanto dos indigentes proscritos!

Tua sábia barca haverá de vencer as ondas altas, pois teu navegar é uma forma de rezar por (e perdoar) todas as gentes.

Eia, a humilde dama, entre todas, bendita,

as mãos ágeis, à terra entrelaçadas,

os olhos, duas naus no infinito conduzidas...

 

***

 

Vem, mulher bendita, agraciada,

acolhe-nos sob teu manto de candura

e recita as promessas da eternidade...

Os tempos estranhos atraem os corvos da morte; e os homens e mulheres puros, esquecidos da fé milagrosa, entregam-se ao destino cruento.

Eis que surge, em manto de candura, o verbo da bendita Poetisa. Com seu recital plácido, espanta de vez todo o mal que antes se nos avizinhava.

Moral da poesia: poetisa-peregrina assim ressuscita-nos para uma nova e cândida vida. Relicário de kallianices.

Houve uma ventania,

vinda de algum deserto:

seu flagelo desenfreado

açoitou todas as portas,

fraturou as tantas janelas,

desossou as estruturas

de minha única moradia.

 

***

 

Dessa luz eu vou colhendo

os frutos adocicados,

preparando, em segredo,

as mais finas iguarias,

para celebrar a vida, que se doa,

de presente, todo dia.

De um poema, colhi uma flor. De outro, ao fim da página, uma estrela azul. Ao fim da parte inicial, celebrei um presente, celestial iguaria. Em segredo, fartei-me com uma colheita de auroras.

— E quanto ao mal à frente? — Tu me afliges.

Kalliane, de mãos para os céus, me aliviaria: “Se amanhã serei, não sei, /não sei de tintas nem melodias /para o que virá, se virá, /sei que sempre será dia, /sempre será luz /e, mais adentro, calmaria, /apesar da noite escura, /apesar da ventania, apesar da ventania.”

Ó, vale de lágrimas!

Ó, imenso deserto!

Tudo se desfaz, tudo passa!

 



Obs.: os trechos em itálico foram extraídos do livro Peregrina, de Kalliane Amorim. — Mossoró: Sarau das Letras, 2020.


*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.


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