sexta-feira, 29 de maio de 2020

Jogos poéticos - A mesa - Parte 2

Evocadora de lembranças, memórias olfativas e afetivas, protegida por toalhas de linho ou exposta em suas rugas, requintada ou simples, não importa: a mesa é objeto sagrado em torno do qual se enraíza nossa identidade. As crônicas e poemas a seguir refletem sobre isso. Boa leitura!


A MESA: LEMBRANÇAS

(Ieda Chaves)

Tenho boas lembranças de uma vida inteira, mas as que me trazem gostosas recordações são fatos da minha infância vivida no interior nordestino, na cidade de Portalegre, no Rio Grande do Norte, onde a vida simples foi repleta de amor e sabores.

Da minha fase de criança o que mais me recordo são das mesas fartas, na casa de meus avós e tios, que moravam na zona rural, onde se comia o que era plantado, cultivado e colhido, com parceria e cumplicidade.

Tenho boas lembranças desse tempo no qual aprendi que a qualidade da colheita é resultado do que se cultiva e da forma como se respeita o meio ambiente. A arte de arar a terra, plantar, ver brotar e aguardar a colheita sempre foi um exercício de contemplação e gratidão.

Tenho boas lembranças de um tempo em que se esperava o inverno começar, no mês de janeiro, para em março dar início ao plantio de milho, feijão e mandioca. Vem essas doces lembranças de um tempo em que, ao acordar, a mesa estava posta e, nela, o café e o leite quente (trazido do curral que ficava a poucos metros da casa, e que era fervido segundos antes de ir para a mesa). Para o acompanhamento tinha a tapioca feita na hora (coberta com nata fresca e recheada com ovo caipira que se pegava nos ninhos, ali mesmo no terreiro).

Depois do café tomado havia tarefas a serem feitas. Lembro-me do que mais gostava: separar os grãos de feijão que iriam encher os silos para esperar até a próxima safra e, também, de debulhar milho ou descaroçar algodão para fazer os pavios para as lamparinas que iluminavam as noites de climas agradáveis.

Tenho boas lembranças da hora do almoço. Lá estava, na mesa, um cardápio que agradava meu paladar: feijão (na maioria das vezes temperado com toucinho), arroz de leite e cuscuz. A mistura variava, podendo ser carne de boi, porco ou carneiro, em regra, guisados ou fritos em banha de porco, com sabor indescritível dos temperos caseiros, geralmente, finalizados com coentro e cebolinha (colhidos na horta da casa).

As mesas do almoço de domingo, sempre fartas, eu já podia adivinhar o prato principal: galinha, pato ou guiné (capote ou galinha d’angola), acompanhado do tradicional pirão.

Tenho boas lembranças dos pratos servidos no jantar. Eles ofereciam sabores indescritíveis, como o cuscuz com leite (ou a paçoca), coalhada fresca, mungunzá, batata doce com leite, tapioca e ovo frito, café com leite, e, na época do milho verde, as tradicionais pamonha e canjica.

Não posso esquecer dos sabores das sobremesas artesanais, feitas com produtos e frutos colhidos nos pomares que ficavam aos redores das casas (doce de leite, caju e goiaba).

Sendo que o meu doce preferido era o de gergelim. Havia também frutas frescas da estação as quais eram feitos os sucos de manga, goiaba, caju, maracujá, cajarana, seriguela e limão adoçados com raspa de rapadura (hoje, quando quero fazer o suco com essas mesmas frutas, uso o açúcar mascavo).

A mesa da sala de jantar era o lugar mais sagrado da casa e, a qualquer hora do dia ou da noite estava lá, em uma bandeja forrada com toalhinhas brancas de linho, as guloseimas para saciar a fome. Só era preciso ir lá e “beliscar”. Ah, as gostosuras incluíam bolinhos de goma feitos com nata e coco, rapadura (cortada em quadradinhos), alfenim, batida (de rapadura) e pão de ló.

Tenho boas lembranças de que era em torno da mesa (ladeada por dois bancos de madeira), que ficávamos após as refeições para um dedinho de prosa. Os adultos falavam antes, as crianças depois, mas todos conversavam sobre os assuntos do dia a dia, daquela vida pacata, porém repleta de alegrias.

Nas principais refeições, café, almoço e janta, os momentos eram sagrados e respeito não podia faltar. Isso incluía, desde os horários aos lugares onde se sentar (sendo a cabeceira da mesa o lugar dos mais velhos e do dono da casa). Havia respeito, amor e afeto. Era na mesa farta de comida e, sobretudo, de amor, que nos sentíamos acolhidos, alimentados e abençoados.

Ah! a toalha era xadrez durante a semana e, a de domingo, branca e de linho.



TÃO PERFEITA

 (Dulce Cavalcante)


Essa mesa posta,

tão perfeita,

traz muita resposta

na lembrança quase desfeita.

 

 A mesa posta,

 a toalha desbotada,

os pratos de louça  (na minha visão)

já craquelados,

talheres baratos 

ariados com sabão e areia do rio

davam-lhes brilho e valor.

 

A mesa posta,

os rostos afogueados de ansiedade,

a mãe altiva, dona gentil

do pão de cada dia

que a mesa posta exibia.

O tempo a leva para o altiplano das saudades...

Quero trancar com mil chaves

nesse meu velho “comboio de corda chamado coração”.

 


NAQUELA MESA

(Marlene Maia)


Eu me lembro com saudade da primeira mesa onde fazíamos nossas refeições.

Éramos uma família de 11 irmãos, todos como uma escadinha - a diferença de idade era muito pouca.

Na época, na minha casa não existia mesa na sala de jantar; era na cozinha que a minha mãe preparava a refeição e colocava numa mesinha bem baixinha - uma especie de mesa japonesa. Todos nós sentávamos nuns cubos de madeira com o nome de cada um xilografado, que a gente chamava de cepo de sentar. A mesa era posta com pratos de ágata branca com motivos florais pintados. Eu achava lindos aqueles pratos...

Não usávamos talheres; comíamos de colher e lembro bem que elas eram douradas e bem trabalhadas, que a gente dizia que eram de ouro. Depois do almoço e jantar, todos recolhiam seus cepos e empilhavam-nos lá num cantinho; e a mesa era colocada num suporte na parede para não ocupar o espaço na cozinha.

Ainda hoje recordo essa bendita mesa guardada na memória dos tempos idos. Depois a mesa serviu de decoração para pequenos jarrinhos de condimentos, uma pequena horta que minha mãe plantava.

Aquela mesa deixou muitas reminiscências. 



GRANDE MESA

(Célia Medeiros)


E de repente, vêm à lembrança tempos idos,

Pessoas queridas sentadas à mesa, a boa prosa,

Degustando comidas simples, porém, de sabor indescritível,

Feitas com amor, gesto singelo de bem nutrir.

Quantas conversas trazidas naqueles instantes

Dentro de uma harmoniosa interação

Da família constituída, originada não apenas pelo sangue,

Mas pela acolhida, pelo ato de cuidar e fazer crescer.

Que saudades! Quanto amor envolvido! Esquecer, jamais!

A semente plantada naquele tempo foi transportada

Para uma nova realidade... germinou, cresceu!

Hoje, na mesa posta, são novos rostos, exceto o meu.

Mas repito o ato, tudo aquilo que um dia alguém me deu.

A vida segue, aqui e lá, em algum lugar, uma grande mesa

Novamente vamos formar...



UM CAFÉ, ÀS TRÊS DA TARDE

(Kalliane Amorim)


Rabanadas açucaradas,

rescendendo à canela,

atravessam as três da tarde,

clamando por um café.


A garrafa sobre a mesa

coberta com uma toalha

de tecido estampado

com detalhes em xadrez -

mamãe mesma costurara...


Nossas xícaras já cheias

de café e de conversas,

doces, carameladas,

assim como as rabanadas,

que perfumam a cozinha

e as memórias de nossa casa...


Detenho-me um instante,

contemplando a mesa posta,

o café, as rabanadas,

as xícaras de duralex,

e, sob todas essas coisas,

as mãos de minha mãe:

mãos ágeis de costureira,

mãos limpas de doceira,

zelosas em tantas palavras...


É exatamente assim,

sob doces rabanadas,

em meio à tépida névoa

de um café às três da tarde,

que me acena o teu amor.


Nada mais eu peço, nada,

a não ser essa lembrança,

a não ser teus verdes olhos,

minha mãe,

teus olhos, dentro dos quais

ainda me vejo criança.

 


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