Evocadora de lembranças, memórias olfativas e afetivas, protegida por toalhas de linho ou exposta em suas rugas, requintada ou simples, não importa: a mesa é objeto sagrado em torno do qual se enraíza nossa identidade. As crônicas e poemas a seguir refletem sobre isso. Boa leitura!
A MESA: LEMBRANÇAS
(Ieda Chaves)
Tenho boas lembranças de uma vida inteira, mas as que me trazem
gostosas recordações são fatos da minha infância vivida no interior nordestino,
na cidade de Portalegre, no Rio Grande do Norte, onde a vida simples foi
repleta de amor e sabores.
Da minha fase de criança o que mais me recordo são das mesas
fartas, na casa de meus avós e tios, que moravam na zona rural, onde se comia o
que era plantado, cultivado e colhido, com parceria e cumplicidade.
Tenho boas lembranças desse tempo no qual aprendi que a
qualidade da colheita é resultado do que se cultiva e da forma como se respeita
o meio ambiente. A arte de arar a terra, plantar, ver brotar e aguardar a
colheita sempre foi um exercício de contemplação e gratidão.
Tenho boas lembranças de um tempo em que se esperava o inverno
começar, no mês de janeiro, para em março dar início ao plantio de milho,
feijão e mandioca. Vem essas doces lembranças de um tempo em que, ao acordar, a
mesa estava posta e, nela, o café e o leite quente (trazido do curral que
ficava a poucos metros da casa, e que era fervido segundos antes de ir para a
mesa). Para o acompanhamento tinha a tapioca feita na hora (coberta com nata
fresca e recheada com ovo caipira que se pegava nos ninhos, ali mesmo no
terreiro).
Depois do café tomado havia tarefas a serem feitas. Lembro-me do
que mais gostava: separar os grãos de feijão que iriam encher os silos para
esperar até a próxima safra e, também, de debulhar milho ou descaroçar algodão
para fazer os pavios para as lamparinas que iluminavam as noites de climas
agradáveis.
Tenho boas lembranças da hora do almoço. Lá estava, na mesa, um
cardápio que agradava meu paladar: feijão (na maioria das vezes temperado com
toucinho), arroz de leite e cuscuz. A mistura variava, podendo ser carne de
boi, porco ou carneiro, em regra, guisados ou fritos em banha de porco, com
sabor indescritível dos temperos caseiros, geralmente, finalizados com coentro
e cebolinha (colhidos na horta da casa).
As mesas do almoço de domingo, sempre fartas, eu já podia
adivinhar o prato principal: galinha, pato ou guiné (capote ou galinha
d’angola), acompanhado do tradicional pirão.
Tenho boas lembranças dos pratos servidos no jantar. Eles
ofereciam sabores indescritíveis, como o cuscuz com leite (ou a paçoca),
coalhada fresca, mungunzá, batata doce com leite, tapioca e ovo frito, café com
leite, e, na época do milho verde, as tradicionais pamonha e canjica.
Não posso esquecer dos sabores das sobremesas artesanais, feitas
com produtos e frutos colhidos nos pomares que ficavam aos redores das casas
(doce de leite, caju e goiaba).
Sendo que o meu doce preferido era o de gergelim. Havia também
frutas frescas da estação as quais eram feitos os sucos de manga, goiaba, caju,
maracujá, cajarana, seriguela e limão adoçados com raspa de rapadura (hoje,
quando quero fazer o suco com essas mesmas frutas, uso o açúcar mascavo).
A mesa da sala de jantar era o lugar mais sagrado da casa e, a
qualquer hora do dia ou da noite estava lá, em uma bandeja forrada com
toalhinhas brancas de linho, as guloseimas para saciar a fome. Só era preciso
ir lá e “beliscar”. Ah, as gostosuras incluíam bolinhos de goma feitos com nata
e coco, rapadura (cortada em quadradinhos), alfenim, batida (de rapadura) e pão
de ló.
Tenho boas lembranças de que era em torno da mesa (ladeada por
dois bancos de madeira), que ficávamos após as refeições para um dedinho de
prosa. Os adultos falavam antes, as crianças depois, mas todos conversavam
sobre os assuntos do dia a dia, daquela vida pacata, porém repleta de alegrias.
Nas principais refeições, café, almoço e janta, os momentos eram
sagrados e respeito não podia faltar. Isso incluía, desde os horários aos
lugares onde se sentar (sendo a cabeceira da mesa o lugar dos mais velhos e do
dono da casa). Havia respeito, amor e afeto. Era na mesa farta de comida e,
sobretudo, de amor, que nos sentíamos acolhidos, alimentados e abençoados.
Ah! a toalha era xadrez durante a semana e, a de domingo, branca
e de linho.
TÃO PERFEITA
(Dulce Cavalcante)
Essa mesa posta,
tão perfeita,
traz muita resposta
na lembrança quase desfeita.
A mesa posta,
a toalha desbotada,
os pratos de louça (na minha visão)
já craquelados,
talheres baratos
ariados com sabão e areia do rio
davam-lhes brilho e valor.
A mesa posta,
os rostos afogueados de
ansiedade,
a mãe altiva, dona gentil
do pão de cada dia
que a mesa posta exibia.
O tempo a leva para o altiplano das saudades...
Quero trancar com mil chaves
nesse meu velho “comboio de corda chamado
coração”.
NAQUELA MESA
(Marlene Maia)
Eu me lembro com saudade da
primeira mesa onde fazíamos nossas refeições.
Éramos uma família de 11 irmãos, todos como uma escadinha - a diferença de idade era muito pouca.
Na época, na minha casa não
existia mesa na sala de jantar; era na cozinha que a minha mãe preparava a
refeição e colocava numa mesinha bem baixinha - uma especie de mesa japonesa.
Todos nós sentávamos nuns cubos de madeira com o nome de cada um xilografado,
que a gente chamava de cepo de sentar. A mesa era posta com pratos de ágata
branca com motivos florais pintados. Eu achava lindos aqueles pratos...
Não usávamos talheres; comíamos
de colher e lembro bem que elas eram douradas e bem trabalhadas, que a gente
dizia que eram de ouro. Depois do almoço e jantar, todos recolhiam seus cepos e
empilhavam-nos lá num cantinho; e a mesa era colocada num suporte na parede para
não ocupar o espaço na cozinha.
Ainda hoje recordo essa bendita
mesa guardada na memória dos tempos idos. Depois a mesa serviu de decoração
para pequenos jarrinhos de condimentos, uma pequena horta que minha mãe
plantava.
Aquela mesa deixou muitas
reminiscências.
GRANDE MESA
(Célia Medeiros)
E de repente, vêm à lembrança
tempos idos,
Pessoas queridas sentadas à mesa, a boa prosa,
Degustando comidas simples, porém, de sabor indescritível,
Feitas com amor, gesto singelo
de bem nutrir.
Quantas conversas trazidas
naqueles instantes
Dentro de uma harmoniosa
interação
Da família constituída,
originada não apenas pelo sangue,
Mas pela acolhida, pelo ato de
cuidar e fazer crescer.
Que saudades! Quanto amor
envolvido! Esquecer, jamais!
A semente plantada naquele tempo
foi transportada
Para uma nova realidade...
germinou, cresceu!
Hoje, na mesa posta, são novos
rostos, exceto o meu.
Mas repito o ato, tudo aquilo
que um dia alguém me deu.
A vida segue, aqui e lá, em
algum lugar, uma grande mesa
Novamente vamos formar...
UM CAFÉ, ÀS TRÊS DA TARDE
(Kalliane Amorim)
Rabanadas açucaradas,
rescendendo à canela,
atravessam as três da tarde,
clamando por um café.
A garrafa sobre a mesa
coberta com uma toalha
de tecido estampado
com detalhes em xadrez -
mamãe mesma costurara...
Nossas xícaras já cheias
de café e de conversas,
doces, carameladas,
assim como as rabanadas,
que perfumam a cozinha
e as memórias de nossa casa...
Detenho-me um instante,
contemplando a mesa posta,
o café, as rabanadas,
as xícaras de duralex,
e, sob todas essas coisas,
as mãos de minha mãe:
mãos ágeis de costureira,
mãos limpas de doceira,
zelosas em tantas palavras...
É exatamente assim,
sob doces rabanadas,
em meio à tépida névoa
de um café às três da tarde,
que me acena o teu amor.
Nada mais eu peço, nada,
a não ser essa lembrança,
a não ser teus verdes olhos,
minha mãe,
teus olhos, dentro dos quais
ainda me vejo criança.
Nenhum comentário:
Postar um comentário