segunda-feira, 25 de maio de 2020

Jogos poéticos - A pia - Parte 1

Impossibilitados de realizar presencialmente os encontros mensais da Confraria Café & Poesia, em razão da necessidade de isolamento social nesses tempos de pandemia, iniciamos nossos jogos poéticos com o desafio de escrever sobre temas cotidianos. O primeiro deles foi "a pia". Sim, a pia, essa que é destinada a receber a louça dos dias - como gostaria de acreditar que em toda casa, em todo lugar, houvesse uma pia com alguma louça por lavar! Lançado o desafio, os poemas colhidos foram os que se seguem. Espero que apreciem, são diferentes miradas sobre um mesmo objeto comum.

A PIA

(Vanda Jacinto)

 

Quase nada me assusta

Dos afazeres de casa,

Mas a pia cheia de louça

O bom humor logo vaza.

 

E quando isso acontece

Arrumo logo um jeitinho,

Começo logo a cantar

E vou lavando de mansinho.

 

Se a preguiça de repente

A eficácia prejudicar,

Fica a dica pertinente:

Comece logo a lavar.

 

Pia cheia, muita calma!

Mergulhe logo  as panelas,

Aproveite e limpe a alma

E coloque um brilho nela.

 

Tudo fica mais sublime

Com a alma reluzente,

Até a pia de louça

Brilha como o sol poente!



PIA DE PALAVRAS

(Ângela Gurgel)

 

Lá fora alguém

passa gritando,

“pia” como as nuvens

estão escuras,

acho que vai chover...

No quintal um pássaro “pia”

manifestando

sua alegria...

Aqui dentro

uma pia,

repleta de louça,

parece querer

ficar vazia...

Olho para ela

indiferente,

interessa-me mais

esperar a chuva chegar

e ouvir o pássaro cantar...



SILENTES

(Lilia Souza)

 

Na manhã seguinte

Sobre a silente pia

A louça do jantar

Do café da manhã

Um bule de chá

A saudade doída

Uma febre malsã

Sobre aberta ferida.

 

Na pia abarrotada

Sobre toda a louça

Esponja e sabão

Uma chaleira de água quente

Um jato da torneira

A cascata dos olhos

- Em silêncio.

 

Esfrega esfrega

Lava enxágua

Pelo ralo da pia

Tanta água

Escoa

Silente

Volta ao leito dos rios.

 

Lá fora

Canta um sabiá.



PIA, AO SOM DE VINÍCIUS...

(Dany Santos)

 

Não tenho destreza em penejar,

Mas já em lavar louça

Sou muito hábil,

Pois já o faço desde menininha,

Lavo-as sempre com muito esmero,

Acaricio com bucha e sabão

Panelas, pratos e talheres,

Sempre ao som de Vinícius,

Porque se é para esvaziar a pia

Tem que ser em grande estilo.

A água desenhando os contornos

De cada panela, purificando

Uma a uma, embaladas pela melodia

Suave de um início de tarde.



QUE BELEZA!

(Dulce Cavalcante)

 

Vejam os pios

E arrepios do mundo:

Pia o pinto

Pia o bacurau

Pia o peito

Pia a coruja no pé de pau

Pia a pia de louça 

Com pios da xícara de café

Pedindo pra ser lavada

E depois ser levada à sala

Pela mulher

Um café novo coado

Para poesia que põe mesa

Que beleza!!!!!



A PIA

(Célia Medeiros)

 

A pia cheia de louças

Para mim não tem problema,

Tenho esponja, água e sabão

E muita disposição...

Sempre fica bem limpinha,

Sujeira aqui tem não.

Agradeço a Deus por isso,

Sentindo-me privilegiada,

Talvez nem mereça tanto...

Ter comida para comer,

Ter água para beber,

A pia para limpar é pouco...

É o mínimo que posso fazer.

Lembro, ali bem adiante

Não tem água nem comida,

Escassez por toda parte,

Crianças nuas, descalças,

Mães aflitas a clamar:

Socorro, por caridade,

Traz uma pia, instala,

E água para jorrar

Na torneira do barraco.

Traz comida pra fazer,

Que quero ter o prazer

De cozinhar e gerar

Muita louça pra lavar.

Assim, por que eu teria

Motivo para reclamar?



SEM FANTASIA

(Kalliane Amorim)

 

Tão fria, ela me espia, todo dia. Seu colo metálico, assentado na negra bancada de granito, cintila.

Seca, ainda não recolheu da casa as melhores memórias, aquelas que se constroem sobre a mesa, entre risos, conversas, às vezes entre silêncios que se compreendem com o olhar.

Todos dormem, ainda. Porém estou eu cedo a aviar o café das crias, traçando rotas invisíveis pelo piso da cozinha.

Pego de uma faca, corto as frutas numa saladeira. Ligo a torneira: a água a levar a lembrança daquele primeiro corte da manhã. Depois os pães, depois o queijo. E que será de quem não tem louça alguma para empilhar? E que será de quem só ouve o tilintar do desejo, de quem nem pão, nem faca, nem queijo, só a fome a cantarolar?

A esponja ao lado com gotas de detergente, pronta para o fechar e abrir de minha mão. A frieza começa a desaparecer, cedendo lugar ao frescor da água e à peraltice da espuma, purificando talheres e louças, panelas e instrumentos, tudo que vai naquele ofício cotidiano. Inclusive eu mesma, que tanto careço me alvejar.

Quando todos saem, alimentados, volto outra vez a ela, e reatamos o diálogo, que se estenderá fielmente pelo dia. Recosto a barriga na bancada fria, a roupa se umedece. Como um ritual, começo a falar-lhe, mais uma vez. Minha única companhia.

Ouve-me, solícita e atenta, como todas as coisas inertes da casa. O que lhe digo, enquanto ensaboo e enxáguo a louça? O que lhe confesso, enquanto os olhos mantêm-se fixos na água a descer em leve espiral pelo ralo? O que lhe segredo, enquanto o peito, traspassado de presente, vai dando mais brio às horas? A pia, cúmplice de minha rotina, espia quem sou, todo dia. Diante da pia, espio a mim mesma, sem fantasia.


***


Na próxima postagem, continuaremos com os jogos poéticos sobre esse tema.




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