sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Sob a graça dos rituais


Não fossem os rituais, nossa existência estaria fadada ao fracasso. É na repetição dos gestos que vamos ressignificando a vida, a partir das memórias que eles evocam e da mensagem que transmitem: pertencemos a um determinado grupo humano, ou a vários, com suas marcas específicas, traduzidas nos gestos com que nosso corpo fala à nossa alma. O único perigo dos rituais reside naquilo que lhe é mais próprio: a repetição. Porque a repetição pode nos levar ao automatismo, e nisso perdemos o sentido daquilo que fazemos. Nesses tempos em que o discurso da falta de tempo anda tão arraigado às nossas vidas, corremos o sério risco de não mais atentarmos para a graça escondida no rito.
Penso nisso enquanto arrumo armários e gavetas, cheios de papéis velhos, com rabiscos de poemas, listas de compromissos, notas fiscais, exames antigos, cartões natalinos, entre outros artigos de celulose que vim acumulando ao longo dos meses. Sim, periodicamente realizo esse ritual de tirar todas as coisas dos armários e gavetas, limpar o espaço vazio e verificar, um a um, cada objeto e folha de papel, para decidir o que fica e o que deve sair. Mas confesso que, ao final de um ano ou no início de outro, como é o caso agora, tal atividade adquire outro sentido que não o de simplesmente pôr as coisas em ordem. Não sei se a psicanálise explica, mas arrumar o que está fora de nós é uma espécie de projeção de nossa necessidade de equilíbrio interior. Lembro de algo que li não sei onde: organização em demasia é sinal de desequilíbrio interno. Mas convenhamos: não dá para ir acumulando, empilhando, amontoando, e querer que a casa permaneça leve e arejada. Uma boa faxina é sempre bem-vinda, especialmente para começar o ano, literalmente, com cada coisa em seu lugar. Só assim abrimos espaço para o novo que sempre vem, como diria o poeta Belchior.
Divirto-me, frequentemente, fazendo essa tarefa. Vez por outra me deparo com uma foto solta de algum álbum, com um esboço de verso, com algum livro cuja leitura foi interrompida, e começo a relembrar o dia em que a foto foi tirada, a imaginar que poema poderia escrever a partir daquele rabisco, a querer me comprometer de verdade em continuar a leitura do livro que abandonara, muito embora haja tantos outros aguardando meus olhos na fila de leituras prazerosamente obrigatórias. E aí a faxina começa mesmo a demorar, porque esses detalhes vão me chamando a atenção e é impossível não me render, ao menos um tempinho curto, a eles.
Outro rito, entre os tantos ameaçados atualmente, é o que se dá quando comemos. A urgência da produtividade desenfreada vai suprimindo, aos poucos, até esse momento tão prazeroso que é sentar-se à mesa e apreciar a comida, seja ela qual for. Frequentemente, parecemo-nos com a personagem de Chaplin em Tempos Modernos: enquanto estamos ocupados, vamos engolindo a comida, sem ao menos olhar para ela, sem mastigar o necessário para lhe sentir o sabor. Não importa se é um prato trivial feito em casa ou se é um manjar servido em um restaurante. Comemos, e tudo parece ter o mesmo gosto de pressa.
Nos momentos em que aguçamos os sentidos envolvidos no ato de comer, coisas mágicas podem acontecer. Percebemos sorrisos na espuma do café, flores nas escamas das cebolas, borboletas nas maçãs, simetrias e formas as mais diversas que nos fazem pensar em como nunca estudamos geometria simplesmente contemplando o que comemos! Nunca me esqueci do dia em que, tendo acordado um pouco mais tarde, levantei-me às pressas para preparar a vitamina de meu filho. Peguei um mamão e, não sei por que razão, cortei uma rodela, em vez de uma fatia, como costumo fazer. Comecei a rir sozinha, olhando para aquela fatia que me revelava uma estrela, encarnada por fora e repleta de pequenas sementes escuras e brilhosas por dentro. Lembrei imediatamente do Operário em construção, que, ao olhar para sua própria mão, espantou-se - era ela quem construía toda a cidade! - e experimentou a dimensão da poesia naquele instante solitário, em sua casa vazia.
Oxalá possamos sair do modo automático e dar vazão ao ócio sadio de permitir ao nosso corpo e à nossa alma alargar-se um pouco mais, saboreando, com vagar, essa vida, naquilo que ela tem de mais repetitivo e, por isso mesmo, sempre fecundo!


Kalliane Amorim

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