sexta-feira, 5 de outubro de 2018

O que é bom, e amado, e belo


Releio o Diário de Anne Frank, na data de 7 de março de 1944, quando ela, pouco antes de completar 15 anos, avalia sua vida antes de ir para o esconderijo no Anexo Secreto e depois de estar lá, vivendo sob a tensão de ter o prédio invadido por agentes da SS ou de morrer em meio aos bombardeios em Amsterdã.
            Anne, que lá se escondera com sua família em 1942, já não era mais a mesma. O sofrimento, advindo de privações das mais variadas ordens, fez com que ela amadurecesse em pouco tempo. Não podia se dar ao luxo de sair do esconderijo, nem mesmo se estivesse doente, não podia ouvir o rádio num volume que não fosse o mínimo, não podia abrir as janelas, exceto uma pequena fresta e em determinadas horas do dia, não podia fazer barulho ao andar ou realizar quaisquer afazeres dentro do Anexo. E o que podia fazer aquela garota que sonhava em ser jornalista e escritora? Ter esperanças, ler livros, muitos livros - As pessoas comuns não sabem quanto os livros significam para alguém escondido, ela afirma em seu diário -, além de estudar idiomas, interessar-se por mitologia, procurar entender a si mesma em fase tão conturbada como é a adolescência, e escrever nas páginas de seu diário de capa xadrez.
No relato que ela faz, avaliando a si própria, revela:
 Apesar de tudo, eu não era totalmente feliz em 1942; costumava me sentir abandonada, mas, como passava o dia inteiro na agitação, nem pensava nisso. Eu me divertia ao máximo, tentando, consciente ou inconscientemente, preencher o vazio com piadas.
Mais à frente, ela confessa:
Vou me deitar, depois de terminar as orações com as palavras Ich danke dir für all das Gute und Liebe und Schöne (Obrigada por tudo que é bom, amado e belo) e me encho de alegria.[...] Nesses momentos, não penso na infelicidade, e sim na beleza que permanece. É nisso que eu e mamãe somos muito diferentes. Seu conselho diante da melancolia é: 'Pense em todo o sofrimento que há no mundo e agradeça por não fazer parte dele.' Meu conselho é: 'Saia, vá para o campo, aproveite o sol e tudo que a natureza tem para oferecer. Saia e tente recapturar a felicidade que há dentro de você; pense na beleza que há em você e em tudo ao seu redor, e seja feliz.' Não acho que o conselho de mamãe possa ser bom, porque o que você deveria fazer caso participasse do sofrimento? Ficaria totalmente perdida. Pelo contrário, a beleza continua a existir, mesmo na desgraça.
O relato de Anne é de uma sensatez, de um equilíbrio e de uma verdade que muitas vezes descobrimos se e somente se passarmos pela dor, porque ela educa. O sofrimento pode extrair de nós o melhor sumo, mas não precisamos descartar o bagaço ou fazer de conta que ele não existe. Se antes vemos uma Anne - e nesse ponto Anne é qualquer um de nós - preenchendo seu vazio com piadas e brincadeiras, ocupando a própria mente com tudo o que a impedia de mergulhar em si própria, em meio às muitas distrações das quais escolhia não se distanciar, ainda que por breves momentos, vemos depois uma outra Anne, agradecendo por tudo que é bom, amado e belo, em plena guerra. Em momento algum, existe negação de si, mas uma consciência que vai se aprofundando, vai fazendo essa viagem interior proporcionada pelo sofrimento. O toque delicado nem sempre acorda as pessoas, diria Kahlil Gibran. É preciso, para algumas (desconfio que quase a totalidade delas), experimentar os golpes da vida em sua maior intensidade e tirar deles algum proveito.
Porque no fim das contas, quando conseguimos olhar a vida como espectadores, de fora, distanciando-nos do redemoinho em que inúmeras vezes nos encontramos, vemos que tudo contribui para que sejamos o que somos - cheios de virtudes e defeitos - e possamos ver o outro da mesma maneira, com um olhar mais compassivo e altruísta. E então compreendemos que as coisas se tornam boas, amadas e belas a partir da nossa perspectiva, quando usamos as lentes da verdade interior que sussurra dentro de nós e que teimamos em abafar, iludidos pelas luzes exteriores, como insetos em torno de uma lâmpada.
O mais bonito nesse processo é que quem retorna dessa viagem interior nunca mais é o mesmo. Seus olhos se abrem de tal forma para a vida que seu maior desejo é possibilitar aos outros degustar do mesmo manjar com que se deliciou nesse percurso de encontro consigo próprio. Felizmente, essa é uma tarefa que cabe a cada um. Ninguém pode vivê-la por ninguém. Só nos é possível mostrar com a própria vida essa beleza que continua a existir e que é tão atrativa e desafiadora. Só nos é possível compartilhar, porque o que é bom, e amado, e belo - como diz, com outras palavras, meu amigo e conselheiro padre Guimarães - é para ser dividido com os demais. Só nos é possível estender o convite, dizendo: Esta é a manhã da consciência! / Voemos juntos! Desperta! Segue-me!, fazendo ressoar os versos do poeta oriental Kabir. O primeiro passo nessa aventura em busca de sua essência, porém, depende da escolha de cada um.


Kalliane Amorim

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