Outro dia,
Manoel Onofre Júnior nos falava do hábito de escrever cartas, outrora tão caro,
porém hoje tão raro, nesses tempos de tecnologias instantâneas, quando a doçura
da espera parece não mais nos comover. Queremos a mensagem rápida, pois não
podemos perder tempo. Mas como se perde tempo, porque todo o tempo é gasto na
leitura de mensagens por meio das redes sociais, multiplicadas como um vírus
que se alastra sem que nós ao menos pensemos em duvidar da veracidade delas.
Críticas a esse modelo de comunicação? Tenho lá as minhas, embora muitas vezes
me veja presa a esse tipo de - se pudesse usaria umas aspas bem grandes -
"comunicação".
Ainda
criança, lembro-me de que, para comemorar o dia dos pais, as professoras nos
orientaram a escrever uma carta para nossos pais. Noutra oportunidade,
escrevemos telegramas - dou-me conta, agora, que se um adolescente estiver
lendo este texto vai recorrer ao Sr. Google para descobrir o que significa tal
palavra - para expressar nosso respeito e amor àqueles que nos trouxeram ao
mundo e que, em muitos casos, nunca tinham escrito nem cartas nem telegramas.
Era o caso de meu pai. No dia em que a carta e o telegrama chegaram, foi uma
alegria só, acho que para mim a porção foi dobrada, porque fiquei contando
quanto tempo demorava para a correspondência chegar. Tão mais fácil seria eu
mesma entregar aquelas linhas escritas para alguém que estava tão próximo de
mim, ser eu mesma remetente e carteira. No entanto, como cabe na maioria das
vezes à escola perpetuar esses velhos e bons costumes, a mensagem seria escrita
em sala, envelopada, selada e depois entregue à professora, que colocaria todas
no correio, porque somente assim poderíamos, por um momento que fosse, exercer
nossas habilidades de escrita num contexto social real - e lá vem Bakhtin com
seus gêneros discursivos para confirmar o que estou dizendo!
No dia em
que ouvi a campainha tocar aquele diiiim-doooom parecido com o dobre de um
sino, corri para a porta de casa. Espiei pela fresta da janela e vi o carteiro,
com sua farda azul e amarela, a bolsa grande ao lado, a bicicleta amparada
entre suas pernas, do outro lado do portão de ferro pintado de marrom. Fui
chamar meu pai, porque ainda era criança e não ia sozinha abrir o portão a um
estranho, muito embora não houvesse perigo algum - é difícil para muitos
acreditar que em Mossoró as casas podiam ficar o dia inteiro de portas abertas,
ou apenas fechadas, sem tranca alguma, mas é verdade. Bom, meu pai foi até o
portão receber a correspondência, e eu, dentro de casa, espiando tudo, o
coração saltitando por ver o carteiro chegar, uma semana depois do envio da
carta. Essa sensação que me acometeu em virtude da espera, senti outras
inúmeras vezes, com o semblante radiante ao ver uma carta entre as mãos e sob
meus olhos atentos.
Na minha
adolescência, era comum ver nas revistas um espaço destinado a pessoas que
buscavam se corresponder com outras e, para isso, enviavam seu endereço postal
e algumas informações, como idade e interesses pessoais. Havia quem quisesse se
corresponder e travar amizades em virtude de assuntos os mais variados, desde
admiração por algum artista até o ato de colecionar selos e papéis de carta. Um
dia, vi numa revista o endereço de uma menina que morava em Portugal, e decidi
escrever para ela. Passamos um tempo nos falando por cartas, mas não durou
muito, acabamos deixando de lado uma amizade que bem poderia ter permanecido
viva por mais tempo. Coisas da vida, uma hora temos as pessoas bem perto,
noutras, distante, depois elas tomam outro rumo, nós também, e assim vai se
desenrolando a nossa trajetória neste mundo.
Jovem,
durante minha graduação, foi a vez das cartas trocadas com uma amiga do mesmo
curso e residente na mesma cidade, porém num bairro tão afastado do meu, que
justificava essa amizade postal. Cursávamos períodos diferentes na Faculdade de
Letras e Artes (UERN) e dificilmente conseguíamos nos ver e conversar durante a
semana. Eram tantos afazeres acadêmicos que nos impediam de conversar face a
face, que só nos restava escrever uma para a outra. Foi quando descobri a carta
social. Fui toda feliz aos Correios comprar uma cartela de selos, cada um
custava um centavo apenas, dava para enviar quantas cartas eu quisesse, e
receber outras tantas quanto minha amiga desejasse. Era o paraíso! Falávamos de
literatura, trocávamos poemas, ela, que ainda não dispunha de uma máquina de
escrever - lembrem-se que estamos falando de um tempo em que computador era
algo raríssimo, e completamente fora da posse da maioria das pessoas -
mandava-me textos seus para eu datilografar na minha Olivetti verde-musgo,
herança temporária de uma prima que morou na casa de meus pais. Passamos um bom
tempo assim, nessa amizade tecida palavra a palavra, as cartas manuscritas indo
e vindo, formando essa teia invisível entre bairros distantes de uma mesma
cidade, por onde poderíamos, sempre que a imaginação permitia, equilibrarmo-nos
e irmos ao encontro uma da outra, ao simples reler de uma carta. Porque se é
bom receber e ler, melhor ainda é reler e degustar vagarosamente o que vai
escrito na caligrafia de cada remetente.
Em tempos
mais recentes, troquei cartas com algumas pessoas de diferentes estados
brasileiros, ávidas por literatura assim como eu. Confesso que já li mais, mas
quantidade não vem ao caso, vale mesmo é a qualidade do que se lê. E pessoas
que gostam de ler, em geral tendem a querer escrever também, para si mesmas, em
diários, para os outros, em cartas, artigos de jornal, mensagens especiais para
amigos, e o que mais for possível. Gostaria de escrever mais cartas, é verdade.
Sentar-me à mesa e pegar uma folha em branco, preencher o espaço superior com o
nome da cidade e a data, ficar me questionando que tipo de tratamento usar para
cada destinatário, como vou começar, o que vou falar, que perguntas vou fazer,
que confissões assumir... Isso leva tempo, o tempo da reflexão interior que as
mídias contemporâneas frequentemente roubam de nós com suas mensagens prontas
como fast-food, em série, sem a
pitada de subjetividade e individualidade que tanto se reclama e pouco se
constrói.
Escrever à
mão possibilita um nível de concentração muito maior de nossa parte, e quando
se trata de cartas ainda mais, porque é a escrita de si mesmo que vai
preenchendo a folha, esse espelho sobre o qual vamos delineando a nós mesmos e
até descobrindo o que não sabíamos antes de pegar a caneta e começar a
escrever. Falando não de cartas, mas de diários, Philippe Lejeune confirma em O pacto autobiográfico esse pensamento:
"O papel é um espelho. Uma vez
projetados no papel, podemos nos olhar com distanciamento. E a imagem que
fazemos de nós tem a vantagem de se desenvolver ao longo do tempo, repetindo-se
ou transformando-se, fazendo surgir as contradições e os erros, todos os vieses
que possam abalar nossas certezas." Assim, um bom exercício, não só de
escrita mas de autoconhecimento, é escrever cartas. Quem sabe não residiria aí
um paliativo para a ansiedade e a falta de concentração que nos acometem hoje?
Escrevamos, pois!
Kalliane Amorim
Kalliane Amorim
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