sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Remédio bom é remédio ruim!


Se olhar, dói mais - era o que me alertavam. É só tampar o nariz, e engolir de uma vez - era o que me aconselhavam. Quando criança, ao me machucar, passavam água e sabão, mas depois vinha o mertiolate, que ardia, e muito. Se estava acometida de males sazonais, nada que um copão de mastruz com leite não aliviasse. Tenho impressão de que minha aversão a chás e demais medicamentos à base de ervas vem da infância, quando tinha que encarar aquele líquido verde espumoso cheirando a mato. Quem nunca torceu o nariz e o corpo todo a remédios que atire a primeira pedra. A lição que fica, no entanto, de experiências assim é a mesma: para o dodói passar, não basta o beijinho da mãe, nem o apoio moral do pai, há de haver o remédio que arde, queima, tem gosto horrível, mas cura. Remédio ruim é remédio bom!
Mas... e o coração? O que pode curar o coração ferido, machucado, cheio de dodóis invisíveis e assustadoramente reais? Que comprimido, elixir, infusão, em que dosagem e por quanto tempo, pode ser capaz de cicatrizar, ainda que lentamente, o interior de quem chora porque perdeu, ou porque nunca ganhou, ou porque sempre ganhou demais, sabendo que, a bem da verdade, ganhar demais é sempre perder demais?...
Psiquiatras prescrevem medicamentos para tratar de ansiedade, distúrbios comportamentais, entre outras mazelas que afligem a alma. Mas alertam: só isso não é suficiente. É preciso fazer terapia, com psicanalista ou psicólogo. E lá vamos nós, que sofremos, em busca de um remédio, alguns em busca de um milagre, que nos desafogue de nós mesmos. E nos deparamos com pessoas que simplesmente nos escutam e nos questionam - simplesmente! -, e saímos dos divãs e poltronas mais perturbados do que quando lá chegamos. Precisamos de chacoalhadas que removam a poeira de tudo que é mal resolvido em nós. E o remédio parece começar a surtir efeito: arde. Alguns, mais ousados, adentram o próprio espelho, outros permanecem paralisados diante dele, e há aqueles que simplesmente dão as costas e vão embora, talvez por não encontrarem em si próprios a força que os faça mover do lugar um só grãozinho de poeira, a fim de que tudo permaneça confortavelmente como está.
Lembro de uma vez ter ouvido uma conversa entre duas mulheres que estavam ao meu lado. Uma delas comentava que essa história de autoconhecimento só serve para a gente ficar se analisando o tempo inteiro e deixar de viver. Para piorar, nessa análise pessoal só tendemos a enfatizar o que há de negativo, de feio, de errado, em nós. Por isso muita gente foge. Não deixei de rir, intimamente, e de certo modo concordar com o que a mulher defendia. Porém, nesse processo há sempre algo de bonito, que é esse inacabamento do ser humano, as transformações pelas quais vamos passando e que afetam diretamente aquilo que estamos sendo naquele momento e aqueles com os quais nos relacionamos. Quando vamos nos desvelando a nós mesmos, pode haver um certo deslumbramento, e choramos, e rimos, e refletimos que, na verdade, nada do que é humano deveria nos surpreender, nem as virtudes nem os defeitos.
Lamento muito quando vejo em reportagens os índices relativos ao consumo de ansiolíticos e antidepressivos, quando sinto, bem próximo a mim, inúmeros jovens e idosos relatando que, em razão de ausência de diálogo e de tantas outras coisas fundamentais, ferem-se das mais diversas maneiras e tentam, inclusive, desistir da vida... Porque vivemos num tempo em que nos empurram goela abaixo verdades que não correspondem, na maioria das vezes, àquela verdade que palpita dentro de nós. E me recordo do que disse Chaplin no discurso final de O grande ditador:  "pensamos em demasia, e sentimos tão pouco", porque "criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela". Quando apenas tomamos medicamentos para o que nos aflige a alma, estamos apenas usando de paliativos que não vão ao cerne do problema. Quando apenas tentamos nos conhecer melhor, percebendo nossas motivações, estamos apenas aliviando o peso de nosso fardo.
Mas nada disso se compara ao remédio que efetivamente põe um fim aos nossos dilemas: o amor. Podem me chamar de romântica, se quiserem, mas não há nada de romantismo nisso, nada de melosidades açucaradas, nada de clichês. Porque o amor, efetivamente, não pode se valer desses estratagemas à la sessão da tarde ou novela das seis. Amorzinho que se desmancha em choro à menor contrariedade, que manda cartãozinho dizendo para continuarmos assim mesmo, porque mudar estraga.
Amor, amor mesmo, é igual remédio de infância: tão ruim que chega a ser bom. Tão bom que chega a sarar o que quer que sangre, embora faça sangrar. O amor em geral atenta contra a nossa natureza egoísta, que quer tudo e todos de nosso jeito. Sim, o amor, sobre as feridas, arde, queima, machuca, arranca pedaço, dilacera, tritura, mas é lá de dentro de nós, do mais profundo de nós, que ele pode causar essa revolução, gradual, que nos impele a fazer tudo o que não é da nossa vontade, mas contra a nossa vontade e em favor de nosso crescimento enquanto ser humano. E quando vislumbramos tais mistérios aparentemente contraditórios, obviamente depois que o nosso sim ecoa longo e contínuo, o amor nos faz sorrir, o amor nos diviniza.
Aí, sim, começamos a sarar, não por causa da promessa envolta em tarja preta, nem devido a uma análise racional sobre o ser, mas em virtude de um enamorar-se por uma melhor versão de si mesmo.



Kalliane Amorim

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