"Morrerás
por idades imensas... até não teres medo de morrer..."
Sempre que leio esses versos de
Cecília Meireles, que estão num dos poemas de seu livro Canções, ponho-me a
refletir sobre essa amiga que nos acompanha a vida inteira e nos espera no
último umbral da existência, que pode ser daqui a uns minutos ou daqui a muitos
anos. Nunca se sabe. Mas sempre se sabe, porque a finitude é inerente a toda
vida. Nessas reflexões, a morte sempre me pergunta pela sua face oposta, o que
é muito natural, já que ela é a mais interessada em como anda minha vida. Mas
esse é o tipo de reflexão que dificilmente temos antes de passarmos pela
experiência de perder alguém que amamos. Podemos ouvir nos noticiários sobre
mortes, chacinas, tragédias, e ficamos comovidos com essas situações, mas nada
se compara quando ela, a iniludível, se acerca de nossa casa e atinge quem nos
é estimado.
Lembro que aos catorze anos
perdi um amigo. Um muro de pedra, continuamente atingido por fortes ondas,
caíra por cima dele, em Tibau. A notícia de sua morte chegou num fim de tarde.
No dia seguinte, fui à casa dele, uma casa humilde, na mesma rua em que eu
morava. Fiquei na calçada, havia muita gente, amigos de escola, vizinhos, todos
lastimando a fatalidade e tentando consolar sua mãe, que perdera o único filho.
Descobri, nesse dia, que guardaria as recordações de meus mortos de outra
forma, lembrando-lhes vivos. A mim, naquela manhã, era preferível trazer à
mente um dia ensolarado na praia, quando eu, meu amigo e meu primo, que morava
em frente à casa dele, disputávamos quem conseguia catar mais búzios na areia.
Era melhor lembrar-me do sorriso de Alan com aquele sinal logo acima dos
lábios, os olhos negros e o corpo franzino, do que vê-lo desfigurado dentro de
um caixão.
Não demorou muito, e perdi minha
vizinha, dona Margarida. Foi-se com ela a voz que acordava os domingos
cantarolando "se ela me deixou, a dor é minha só, não é de mais
ninguém...", foi-se com ela o barulho ritmado do pilão que rescendia à
carne de sol e cebola roxa, foi-se com ela a galinha cabidela, o puxão no dedão
do pé, o riso galhofeiro, o cabelo ralo e escuríssimo apesar da idade e sua
reclamação por não ter um fio branco sequer. Margarida Eufrásio, que fora
rainha de carnaval nas antigas em Mossoró, deixava-nos órfãos, todos da rua se
sentiam um pouco seus filhos, quando passavam em frente à sua casa e ela os
chamava pelo nome, acenava, oferecia um café, sempre sentada em sua cadeira na
calçada, exibindo alegre seu riso em seu corpo atarracado e imenso. Deve estar
dançando e cantando em outras paragens, tenho certeza.
Minhas últimas perdas dolorosas
foram meus avós maternos, a quem devo minhas melhores recordações de infância.
Vovó Eulira, com sua perninha aleijada, os dedos tortos, uns por cima dos
outros, tanto que eu tentava imitar porque queria ser como ela, calçando aquela
alpercata feita sob encomenda... Vovó Eulira, que assava pão francês de um
jeito que só ela sabia, deixando a borda sequinha e o miolo ainda mole, que nos
fazia sentar no banco de madeira do lado de fora da casa para tomar sopa às
cinco e meia da tarde... Vovó Eulira, que pronunciava o L final das palavras
com som linguodental, que sabia as capitais de inúmeros países do mundo, que
ensinava os netos a falar inglês e cantava aquela música que até hoje não
consegui encontrar, A francesinha...
Vovó Eulira, que chamava todas as mulheres de neguinha com a maior inocência do
mundo e rezava suas ave-marias à janela do quarto, ao amanhecer e ao
entardecer. Sempre acreditei que ela iria antes de meu avô, porque sofria do
coração, tinha contraído Doença de Chagas havia muitos anos. Mas quando ele
morreu, vítima de um câncer, ela estava lá, já meio desmemoriada, mas ainda
bastante lúcida para rezar por ele. Não passaram três semanas, e minha avó foi
se encontrar com o companheiro de uma vida toda.
Morreram meus avós e, consequentemente,
morreu o lugar em que eles viviam. Modo de dizer, o lugar continua lá, mas não
é o mesmo, só é o mesmo dentro de mim. A casa já não há mais, nem o pé de
oiticica que ficava em frente, nem o pomar com suas romãs, limões, laranjas,
seriguelas - ah, as seriguelas são um capítulo à parte, a estampa mais alegre
de minha meninice! Nada lá é como antes, e ao dizer isso percebo os discursos
da maturidade me atravessando, a consciência de que a morte, metaforicamente,
vai perpassando minha vida, mas trazendo consigo o renascer de outras
realidades. Sinto pena por saber que meu filho não verá a Camponesa, a fazenda
de meus avós, como eu vi. Verá outra, porque outro é o tempo, mas saberá de mim
que tintas a coloriam, se saberá!
Outras pessoas próximas já se
foram, porém essas de que falei são as que mais me deixaram lembranças.
Natural, pela proximidade da convivência. Continuo sem querer fitar a face dos
mortos, talvez isso mude, quem sabe. A certeza, porém, de que morro
constantemente é a mais clara em mim. Todos os dias morro um pouco, no corpo e
na alma, mas morro para tentar renascer de outro jeito. A essência da semente
não se perde, mas ela precisa ser depositada no fundo da terra, ou no fundo do
tempo, ou seja lá onde for, para ressurgir com outro dulçor. Talvez a vida seja
isso mesmo, um constante morrer e renascer, até que chegue o dia em que
renasçamos em outro território. Quem sabe um dia aprendamos a encarar o umbral
definitivo com a serenidade de quem aceita o curso natural da vida e não se questiona
desnecessariamente, certos de que a única coisa que vale a pena na vida e dá
sentido à morte é o amor que damos aos outros.
Kalliane Amorim
Kalliane Amorim
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