sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Do poder das palavras


Relendo uma das crônicas do paraibano Hildeberto Barbosa, em Os livros: a única viagem (Ideia, 2017), ri-me novamente com seu parecer acerca da voz de Drummond ao recitar o poema Memória. Não, o poeta itabirano não sabia recitar: "Sua voz, rouca, raquítica, cansada, quase inaudível e sem ritmo, atropela a fluidez melódica do poema, prejudicando sua doce e simples musicalidade". Nem todos que escrevem, sublinha o paraibano, leem "com a devida propriedade estética e emotiva a linha de seus versos".
De fato, recitar é arte para poucos. A impostação da voz, a tonalidade, o acelerar e o desacelerar de acordo com o ritmo do poema, o respeito à sua cadência melódica, a intimidade com o texto e com o autor, entre outros aspectos, entram em jogo no instante de recitar, porque recitar é atuar, é interpretar, não apenas ler, de forma mecânica e sem vida. Não se pode levar a palavra de alguém sem que haja uma transfiguração de si. Uma pessoa, ao recitar, se reveste de outra, adquire outra anima, e nesse intervalo entre o ser que recita e aquele que ouve acontece a magia do toque. A palavra inaugura um outro mundo em nós, quando nos deixamos tocar por seu mistério.
Isso me lembra aquela ode às palavras, feita por Cecília Meireles, em seu Romanceiro da Inconfidência: Ai, palavras, ai, palavras,/ que estranha potência, a vossa! É bem certo que no dia em que ouvi a própria poeta recitar um trechinho desse romance, fiquei um tanto decepcionada, pois imaginava sua voz tão etérea quanto sua poesia. Mas isso é apenas um detalhe frente à obra ceciliana – penso que, se recitasse conforme minha imaginação, ela não seria, definitivamente, humana, seria no mínimo uma criatura angélica!
Voltando ao poema, Cecília o escreve fazendo uma longa reflexão sobre o poder das palavras e o exercício do poder nas suas mais variadas instâncias, não apenas institucionais, mas também nas relações estabelecidas entre as pessoas na vida comum. Claro que, considerando o todo da obra, a noção de poder como o que provém das autoridades políticas é a que mais se destaca. Mesmo assim, é possível trazer os versos para um plano mais íntimo e fazer esta leitura: da palavra que confere vida àquela que condena, da que anseia por liberdade àquela que extermina, da que se cala por bem àquela que se cala e resulta em mal... Todo o sentido da vida principia na palavra - afirma Cecília.
Essas ideias de que somos pela palavra e de que elas guardam em si alguma força desconhecida, nós as ouvimos de outras formas, em diferentes contextos. Nos cursos de Letras, ouvimos que  a linguagem é o fundamento do homem, que o discurso revela o homem. Em situações cotidianas, escutamos que as palavras têm poder, que quem tem boca vai a Roma. Acredito mesmo nisso tudo, e dentre essas afirmativas é justamente a que se refere ao poder das palavras a mais instigante, dado o caráter de mistério que a envolve.
Um bom exemplo disso acontece quando começamos a trocar as palavras por nossa própria escolha: em vez de reclamar, agradecermos, em vez de maldizer, abençoarmos. O que há em nossa volta vai se transformando pela força que agregamos às palavras. Agradecer por respirar, por poder se mover, por ter o sustento de cada dia, por poder trabalhar, mesmo que isso nos custe, mesmo que, olhando ao redor, não vejamos nada além de esperança. Abençoar o dia, o trabalho, a casa, os filhos, o alimento, os problemas, as doenças, as pessoas difíceis com as quais precisamos conviver, é o reflexo de uma transformação que se inicia dentro de nós.
Já dizia o evangelho: não é o que entra no homem que o contamina, é o que sai dele, de seu coração. Se colocamos dentro de nós boas palavras, a tendência é que, de alguma forma, elas saiam e repousem sobre tudo que está à nossa volta. O nosso semblante muda quando agradecemos e abençoamos, e o contrário também é verdade: se tivéssemos um espelho bem diante de nós nos momentos em que reclamamos da vida - e olhem que muito das reclamações são, no fundo, sem propósito, pelo menos para uma grande parte das pessoas -, veríamos como nos transformamos, como entalhamos sulcos desnecessários em nosso rosto, como toldamos a luz de nossos olhos, como nos distanciamos de nossa essência.
A ciência também explica essa estranha potência das palavras. Agradecer e abençoar, emitir e receber boas palavras e pensamentos estimula a produção de ocitocina e dopamina, neurotransmissores que contribuem com o nosso bem-estar físico, mental e emocional, tornando-nos mais leves e menos ansiosos. Gratidão e infelicidade são estados de espírito que nosso cérebro é incapaz de sentir ao mesmo tempo.
O problema é que muitas vezes, apesar de sabermos de tudo isso, não conseguimos nos isentar do efeito das palavras negativas. Nossa condição humana e o contexto em que estamos inseridos vez por outra nos levam a pronunciar aquilo que nem sempre queremos. Falamos sem pensar e ferimos aqueles que mais nos são próximos, omitimos pensando demais e deixamos de fazer o bem ao outro ou acabamos fazendo o mal mesmo.
No entanto, nesse jogo de palavras em que fazemos a vida, há algo que se chama hábito. Habituamo-nos a acordar cedo, a escovar os dentes, a não comer de boca aberta, a ler, a fazer tantas coisas, por que não criar o costume de abrir nosso interior para acolher boas palavras e fazê-las sair nos momentos oportunos? Por que não retomar o costume de dar e pedir bênçãos, de agradecer pelo que se tem em vez de ruminar por aquilo que falta? Por que não parar de alimentar o espírito com coisas que não o elevam e se habituar a preenchê-lo com o que é bom e belo?
Talvez um instante de agradecimento, uma palavra bendita, uma canção bem elaborada, um poema bem recitado, em pequenas doses diárias, gradativamente aumentadas, seja um tratamento eficaz para que experimentemos de forma positiva desse poder que as palavras têm, ou melhor, adquirem quando passam por nós. É responsabilidade nossa decidirmos ser canais de vida ou de morte para nós mesmos e para os outros.


Kalliane Amorim

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