Relendo uma das
crônicas do paraibano Hildeberto Barbosa, em Os livros: a única viagem (Ideia, 2017), ri-me novamente com seu parecer
acerca da voz de Drummond ao recitar o poema Memória. Não, o poeta itabirano não sabia recitar: "Sua voz, rouca, raquítica, cansada, quase
inaudível e sem ritmo, atropela a fluidez melódica do poema, prejudicando sua
doce e simples musicalidade". Nem todos que escrevem, sublinha o
paraibano, leem "com a devida
propriedade estética e emotiva a linha de seus versos".
De fato, recitar é arte
para poucos. A impostação da voz, a tonalidade, o acelerar e o desacelerar de
acordo com o ritmo do poema, o respeito à sua cadência melódica, a intimidade
com o texto e com o autor, entre outros aspectos, entram em jogo no instante de
recitar, porque recitar é atuar, é interpretar, não apenas ler, de forma
mecânica e sem vida. Não se pode levar a palavra de alguém sem que haja uma
transfiguração de si. Uma pessoa, ao recitar, se reveste de outra, adquire
outra anima, e nesse intervalo entre
o ser que recita e aquele que ouve acontece a magia do toque. A palavra
inaugura um outro mundo em nós, quando nos deixamos tocar por seu mistério.
Isso me lembra aquela
ode às palavras, feita por Cecília Meireles, em seu Romanceiro da Inconfidência: Ai, palavras, ai,
palavras,/ que estranha potência, a vossa! É bem certo que
no dia em que ouvi a própria poeta recitar um trechinho desse romance, fiquei
um tanto decepcionada, pois imaginava sua voz tão etérea quanto sua poesia. Mas
isso é apenas um detalhe frente à obra ceciliana – penso que, se recitasse
conforme minha imaginação, ela não seria, definitivamente, humana, seria no
mínimo uma criatura angélica!
Voltando ao poema,
Cecília o escreve fazendo uma longa reflexão sobre o poder das palavras e o
exercício do poder nas suas mais variadas instâncias, não apenas
institucionais, mas também nas relações estabelecidas entre as pessoas na vida
comum. Claro que, considerando o todo da obra, a noção de poder como o que
provém das autoridades políticas é a que mais se destaca. Mesmo assim, é
possível trazer os versos para um plano mais íntimo e fazer esta leitura: da
palavra que confere vida àquela que condena, da que anseia por liberdade àquela
que extermina, da que se cala por bem àquela que se cala e resulta em mal... Todo o sentido da vida principia na
palavra - afirma Cecília.
Essas ideias de que
somos pela palavra e de que elas guardam em si alguma força desconhecida, nós
as ouvimos de outras formas, em diferentes contextos. Nos cursos de Letras,
ouvimos que a linguagem é o fundamento do
homem, que o discurso revela o homem. Em situações cotidianas, escutamos que as
palavras têm poder, que quem tem boca vai a Roma. Acredito mesmo nisso tudo, e
dentre essas afirmativas é justamente a que se refere ao poder das palavras a
mais instigante, dado o caráter de mistério que a envolve.
Um bom exemplo disso
acontece quando começamos a trocar as palavras por nossa própria escolha: em
vez de reclamar, agradecermos, em vez de maldizer, abençoarmos. O que há em
nossa volta vai se transformando pela força que agregamos às palavras. Agradecer
por respirar, por poder se mover, por ter o sustento de cada dia, por poder
trabalhar, mesmo que isso nos custe, mesmo que, olhando ao redor, não vejamos
nada além de esperança. Abençoar o dia, o trabalho, a casa, os filhos, o
alimento, os problemas, as doenças, as pessoas difíceis com as quais precisamos
conviver, é o reflexo de uma transformação que se inicia dentro de nós.
Já dizia o evangelho:
não é o que entra no homem que o contamina, é o que sai dele, de seu coração.
Se colocamos dentro de nós boas palavras, a tendência é que, de alguma forma,
elas saiam e repousem sobre tudo que está à nossa volta. O nosso semblante muda
quando agradecemos e abençoamos, e o contrário também é verdade: se tivéssemos
um espelho bem diante de nós nos momentos em que reclamamos da vida - e olhem
que muito das reclamações são, no fundo, sem propósito, pelo menos para uma
grande parte das pessoas -, veríamos como nos transformamos, como entalhamos
sulcos desnecessários em nosso rosto, como toldamos a luz de nossos olhos, como
nos distanciamos de nossa essência.
A ciência também
explica essa estranha potência das
palavras. Agradecer e abençoar, emitir e receber boas palavras e pensamentos
estimula a produção de ocitocina e dopamina, neurotransmissores que contribuem
com o nosso bem-estar físico, mental e emocional, tornando-nos mais leves e
menos ansiosos. Gratidão e infelicidade são estados de espírito que nosso
cérebro é incapaz de sentir ao mesmo tempo.
O problema é que muitas
vezes, apesar de sabermos de tudo isso, não conseguimos nos isentar do efeito
das palavras negativas. Nossa condição humana e o contexto em que estamos
inseridos vez por outra nos levam a pronunciar aquilo que nem sempre queremos.
Falamos sem pensar e ferimos aqueles que mais nos são próximos, omitimos
pensando demais e deixamos de fazer o bem ao outro ou acabamos fazendo o mal
mesmo.
No entanto, nesse jogo
de palavras em que fazemos a vida, há algo que se chama hábito. Habituamo-nos a
acordar cedo, a escovar os dentes, a não comer de boca aberta, a ler, a fazer
tantas coisas, por que não criar o costume de abrir nosso interior para acolher
boas palavras e fazê-las sair nos momentos oportunos? Por que não retomar o
costume de dar e pedir bênçãos, de agradecer pelo que se tem em vez de ruminar
por aquilo que falta? Por que não parar de alimentar o espírito com coisas que
não o elevam e se habituar a preenchê-lo com o que é bom e belo?
Talvez um instante de
agradecimento, uma palavra bendita, uma canção bem elaborada, um poema bem
recitado, em pequenas doses diárias, gradativamente aumentadas, seja um
tratamento eficaz para que experimentemos de forma positiva desse poder que as
palavras têm, ou melhor, adquirem quando passam por nós. É responsabilidade
nossa decidirmos ser canais de vida ou de morte para nós mesmos e para os
outros.
Kalliane Amorim
Kalliane Amorim
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