terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Cordel: poesia que transforma

A literatura de cordel me conquistou cedo, nem lembro quando foi a primeira vez em que li as clássicas sextilhas de rimas alternadas pela primeira vez. Se vierem me perguntar, faço como o matuto Chicó: Não sei, só sei que foi assim. 

E foi bem assim:

Quando nóis dois se avistemo,
nossos ói se impariaro.
Nossos chêro se cheraro
quando nóis dois se abracemo.

Um falava, o ôto ouvia,
era tanto alumbramento
que as palavra, feito um vento,
nossos corpo estremecia.

Pense num contentamento
quando nós dois se encontrava,
nossos ói chega briava,
tamanho era o sentimento.

Foi assim que a Poesia
se tornou, num só momento,
minha vida, meu sustento,
nas dor e nas alegria.

Eu sinto um afrouxamento
nos sentido, quando ela vem
derramar em mim seu bem,
ser meu sal, ser meu fermento.

Vixe Maria, é um bem-querê
que chega dói aqui dentro,
que me deixa mais sedento
de vontade de viver!

Ah, quando nóis se avistemo
e nossos ói se impariaro,
nossas vida se ajuntaro
e nunca mais nos separemo!

Bendito seja esse dia,
em que nóis dois se encontremo
e um eterno amor juremo:
o poeta e a poesia!

Valorizar o cordel é valorizar não apenas uma longa tradição da poesia oral que perpassou séculos até chegar ao Nordeste brasileiro e aqui montar, enfim, sua tenda, mas valorizar o que temos de mais belo, que é a cultura e a língua de toda uma comunidade. Fernando Pessoa dizia, poeticamente, que quem quiser ser universal que cante a sua terra. Pois assim é o cordelista, o repentista, o embolador de coco, quer seja num livro impresso, num desafio em meio de feira, num programa de TV, seja onde for. Cantando a sua terra e a sua gente, levam-nas ao conhecimento de quem jamais saberia delas, não fosse a arte da palavra em versos.  

Como toda arte, para ser bem apreciada, precisa ser bem conhecida. Quem não fala bem da literatura de cordel, certamente não conhece a fundo sua estrutura, seus temas, suas variações. Aliás, isso serve para qualquer assunto. Um ditado oriental diz que a ignorância é vizinha da maldade, então quando não se sabe um assunto nem se procura saber a respeito dele, há o perigoso risco de fazer julgamentos preconceituosos.

Há um tempo, ganhei de presente de um amigo um livro intitulado Acorda Cordel na Sala de Aula, um projeto louvável implantado nas escolas cearenses para divulgar o conhecimento da história da literatura de cordel no estado. Os capítulos traziam informações a respeito dos cordelistas que fizeram história recontando clássicos da literatura universal e registrando causos do sertão, como também descreviam as diversas modalidades de cordel, desde as tradicionais sextilhas às décimas em martelo agalopado, inclusive com atividades para que os estudantes pudessem desenvolver seus próprios poemas de cordel e suas próprias xilogravuras.

Para mim, uma das modalidades mais belas do cordel é o galope à beira-mar. O nome, por si só, já é uma imagem poética, não é?
A alternância das sílabas átonas e tônicas, conferindo o ritmo agalopado, os esquemas de rimas, a ambientação litorânea, e o fecho de cada estrofe com a expressão "na beira do mar", dão um tom de lirismo que contrasta com a temática predominantemente sertaneja do cordel.

Mas é claro que a vivência com a literatura de cordel, pela leitura e, especialmente, pela escuta, é primordial para o desenvolvimento de uma sensibilidade a esse estilo de poesia. Até porque o que faz com que nos apaixonemos por qualquer texto literário é, antes de tudo, sua beleza, é ela quem primeiro nos toca, só depois as questões formais entram em cena. Ninguém forma um bom leitor ou um bom autor por meio de regras frias e impessoais, mas pelo vigor de uma leitura viva, pulsante, fascinante, que arrebata os sentidos e demarca os territórios íntimos do ser humano.

A poesia tem um poder transformador, porque fala de um modo que a nossa alma compreende, por meio de imagens. Somos seres imagéticos por excelência, e a palavra tem esse poder de reverberar na nossa imaginação de forma muito singular. Quantas vezes, pela leitura de um poema, não somos como que atingidos por raios luminosos que nos fazem enxergar pessoas, situações, lugares, sob outra ótica? Eu mesma já perdi a conta de quantas vezes tal "epifania" me ocorreu.

Para terminar, deixo como sugestão de leitura dois livros de cordelistas contemporâneos, um deles meu conterrâneo, potiguar, Antonio Francisco, dignamente integrante da Academia Brasileira de Literatura de Cordel, na cadeira de Patativa do Assaré; o outro, nosso querido Bráulio Bessa, orgulhando o Ceará e o Brasil pela palavra transformadora, que alcança milhões de pessoas por meio da TV e das redes sociais.




"Deus nunca se afastou
de nenhum dos filhos seus,
nem nunca deixou de amar
reis, rainhas e plebeus.
O homem é quem se afasta
do braço aberto de Deus."
(Antonio Francisco)


"Pare, não tenha pressa,
não carece acelerar,
a vida já é tão curta,
é preciso aproveitar
essa estranha corrida
que a chegada é a partida
e ninguém pode evitar!"
(Bráulio Bessa)


Excelente leitura!
Até a próxima!


Kalliane Amorim.

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