quinta-feira, 15 de março de 2018

Sobre as casas que habitam em nós





         Se a infância passa num sopro, quiçá fosse um sopro suave para todos nós. Porque uma infância suave é marca indelével na memória, vez por outra lá estamos nós a apalpá-la, acarinhá-la, em meio aos tantos afazeres e responsabilidades da vida adulta. E nesses momentos, emergem dentro de nós os lugares, as pessoas, os objetos e as sensações que ficaram impregnados em nossa alma e de lá nos acenam com o odor agradável das lembranças queridas.
Imagem relacionada            Portinari, quando pintava em suas telas as cenas de infância em sua pequena Brodowski, dizia que os lugares onde brincamos não saem nunca de nossa memória. Daí suas obras serem repletas de terreiros com meninos correndo, empinando pipas, jogando bolas, soltando piões, fazendo piruetas e brincando com animais. Bachelard, com outras palavras, dizia o mesmo, ao afirmar que os espaços têm sua própria poética, funcionam mesmo como metáforas de nossa existência e explicam, especialmente na linguagem imagética da literatura, como funciona ou se dispõe a alma humana. Por que, ao lermos certos poemas, contos, crônicas e romances, nos tocam tanto certas imagens relativas a lugares? Por que a simples menção de um lugar traz à tona personagens que por lá passaram, suas vozes, seus cheiros, seus trejeitos? A palavra, tratada imageticamente, tem esse poder de ressuscitar o que estava em estado de dormência.
            E foi pela palavra de um amigo, dias atrás, que fui tomada pela lembrança de um lugar e de tudo o que ele evoca em minha pessoa. Johann Freire falava, em sua crônica publicada no Espaço Jornalista Martins de Vasconcelos (Jornal De Fato), do dia em que seu avô falecera, deitado numa rede azul, esquecido dos passarinhos nas gaiolas. As descrições da casa, o quintal com todas aquelas árvores, o portãozinho de losangos brancos, e o pombo que visitou a casa durante sete dias seguidos, como um sinal divino de que seu avô estava voando em outras dimensões da existência... À medida que ia lendo, tais elementos suscitavam-me a lembrança da casa de meus avós maternos, na Fazenda Camponesa, em Umarizal, um dos cenários mais idílicos de minha infância.
            Meu avô, Sérvulo, lá chegara bem jovem, vindo de Brejo do Cruz, na Paraíba, oferecendo a meu bisavô seus serviços de construtor de cercas de pedra. Mal chegou e foi se enamorando de minha avó, Eulira, filha do patrão. Nascida em 1916, no mesmo ano em que tinha sido erguida a parede da barragem - até hoje está lá, incrustado nas pedras, "Camponesa, 1916" -, minha avó contraíra paralisia infantil, o que lhe rendeu o encurtamento e a deformação da perna esquerda.  Não sei se esse fora o motivo pelo qual ela foi ficando solteira, enquanto via as irmãs todas se casarem e constituírem família. Fato é que, quando conheceu meu avô, em meados da década de 1940, não demorou muito para que se unissem em matrimônio e passassem a morar numa casa simples, de paredes caiadas e sem alpendre, não muito longe da casa-grande.
A imagem pode conter: atividades ao ar livre            Minha mãe sempre conta suas histórias de infância, e é de tanto ouvi-la narrar as traquinagens das crianças, os trabalhos pesados no roçado de algodão, feijão e milho, a fartura dos tempos de inverno, com a casa de farinha e o engenho em plena atividade, além das muitas situações de choro causadas pelas surras que meu avô infligia aos filhos - uma desobediência ou má-criação sequer, o chinelo e a corda entravam em ação! -, que eu vivo, imaginariamente, numa Camponesa que não conheci. Minha mãe foi minha primeira contadora de histórias; estórias eu só vim conhecer quando comecei a ir à escola. Mas uma coisa são as histórias imaginadas, outra são as histórias vividas. E é dessas que mais gostamos de falar, porque recordar é viver de novo, como bem diz o adágio popular.
            A casa de meus avós tinha uma grande sala, com muitos armadores para caber as redes de todos os filhos e netos, portas e janelas de madeira, com tramelas que eu adorava ficar girando, uma máquina de costura, com o pedal onde minha avó punha seu pé sadio e costurava para toda a família, a muleta recostada ao lado e, logo acima da máquina, uma fotografia monocromática do casal, no dia de seu casamento. Na parede de frente à porta, uma imagem do Sagrado Coração de Jesus e outra do Sagrado Coração de Maria abençoavam a casa, e, num recanto, o rádio de meu avô sobre uma mesinha e algumas cadeiras de ferro arredondadas, com pequenas almofadas servindo de assento, em frente a uma velha TV em preto-e-branco.
            O quarto de minha avó, ao lado da sala, tinha um cheiro característico de lavanda, o perfume preferido dela. Havia um baú de madeira e um pequeno caritó onde ela dispunha os santos de sua devoção, uma cama com gavetinhas acopladas nas laterais e um guarda-roupa pequeno, que, quando aberto, parecia entontecer os sentidos com aquele cheiro agradável que emanava. Mas o quarto seguinte, esse era o preferido dos netos, pois guardava os baús onde meu avô colocava as gostosuras trazidas da feira - as bolachas e as broas eram as minhas preferidas! De lá a gente sentia melhor o cheiro da galinha cozida, do arroz da terra, do pirão, do feijão de corda com farinha e coentro que minha avó cozinhava em seu fogão a lenha.
            A cozinha, aliás, era a alma da casa, seu teto baixo que deixava o ambiente mais aquecido, os feixes de lenha dispostos atrás da porta, os potes de barro com água fresca de chuva, tampados com pano de algodão preso em tiras de elástico, os copos de alumínio pendurados em ganchos na parede, as galinhas empoleiradas nas janelas, curiosas e gulosas, pedindo milho a toda hora, os pintinhos lá fora, numa algazarra festiva, o pé de laranjas doces e suculentas avistado da cozinha, os cercados onde os galos-de-campina coloriam a paisagem com sua cabecinha vermelha...
A imagem pode conter: árvore, céu e atividades ao ar livre            Nesse ambiente onde passava minhas férias escolares inteiras, via meu avô, perambulando pela casa à procura de seu chapéu de palha, muito cedo, para ir até o curral ordenhar as vacas. Ele passava por baixo de nossas redes, com a camisa desabotoada até o meio do peito, a calça de brim amarronzada, de cujo cós pendia um molho de chaves que tilintavam na cadência de seus passos - as chaves dos baús de bolacha e broa, as chaves do armazém, e outras inúmeras chaves que eu nunca soube que portas abriam. Não tenho lembrança de meu avô sério e carrancudo, pelo contrário, lembro-me dele sorrindo, brincando com os netos: colocava-nos no colo e cantava músicas, deixava-se cuidar por nós, que fingíamos tirar piolhos de sua cabeleira branca e estalávamos as unhas como se os tivéssemos matando, levava-nos para o roçado e nos punha em fila para depositar as sementes de feijão nas covas que ele ia abrindo à nossa frente, permitia que ficássemos agarrados à cancela para vê-lo tirar o leite das vacas, que ia espumando para dentro das nossas canecas. Mas andar em sua bicicleta de ferro, com farol aceso a dínamo, isso ele não nos permitia, não tanto pelo ciúme que tinha dela, mas pelo medo de acontecer algum acidente conosco, naquela bicicleta que só ele podia sustentar de pé.
            "A casa é nosso canto do mundo. Ela é, como se diz frequentemente, nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do termo. Até a mais modesta habitação, vista intimamente, é bela." Essas palavras, escritas por Bachelard em seu livro A poética do espaço, dizem o que todos nós sabemos: não importa o tamanho nem a suntuosidade da casa, importam mesmo as memórias que ela imprime em nós, nascidas das relações afetivas entre as pessoas que nela moram ou por ela passam. Para encerrar a conversa, que as emoções já querem transbordar liquefeitas dos olhos, tomo novamente o discurso do filósofo e poeta francês, quando diz que "nunca somos verdadeiros historiadores, somos sempre um pouco poetas e nossa emoção traduz apenas, quem sabe, a poesia perdida [...] pelos poemas, talvez mais do que pelas lembranças, tocamos o fundo poético do espaço da casa" e concluo, por sugestão dele mesmo, com um poema que fiz para esse espaço mais do que vivo em mim:

Poema em branco

A alvura
da toalha sobre a mesa
e do leite na caneca,
do beiju de goma fresca
e do pão do forno a lenha,
do guardanapo estendido
marcando a segunda-feira,
do avental feito de saco
de algodão, casa do açúcar,
esse açúcar também branco
como o dia se escoando
pelas frestas entre as telhas,
entre os olhos alviclaros,
entre as nuvens dos cabelos
que à manhã se misturaram.
Ah, alvura, branca alvura
que não há mais do outro lado
desta mesa à qual me sento
com meus lábios ancorados
nessa transparência viva,
cor exata do passado!...



Kalliane Amorim

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