Se
a infância passa num sopro, quiçá fosse um sopro suave para todos nós. Porque
uma infância suave é marca indelével na memória, vez por outra lá estamos nós a
apalpá-la, acarinhá-la, em meio aos tantos afazeres e responsabilidades da vida
adulta. E nesses momentos, emergem dentro de nós os lugares, as pessoas, os
objetos e as sensações que ficaram impregnados em nossa alma e de lá nos acenam
com o odor agradável das lembranças queridas.
Portinari, quando pintava em suas
telas as cenas de infância em sua pequena Brodowski, dizia que os lugares onde
brincamos não saem nunca de nossa memória. Daí suas obras serem repletas de
terreiros com meninos correndo, empinando pipas, jogando bolas, soltando piões,
fazendo piruetas e brincando com animais. Bachelard, com outras palavras, dizia
o mesmo, ao afirmar que os espaços têm sua própria poética, funcionam mesmo
como metáforas de nossa existência e explicam, especialmente na linguagem
imagética da literatura, como funciona ou se dispõe a alma humana. Por que, ao
lermos certos poemas, contos, crônicas e romances, nos tocam tanto certas
imagens relativas a lugares? Por que a simples menção de um lugar traz à tona
personagens que por lá passaram, suas vozes, seus cheiros, seus trejeitos? A
palavra, tratada imageticamente, tem esse poder de ressuscitar o que estava em
estado de dormência.
E foi pela palavra de um amigo, dias
atrás, que fui tomada pela lembrança de um
lugar e de tudo o que ele evoca em minha pessoa. Johann Freire falava, em sua
crônica publicada no Espaço Jornalista Martins de Vasconcelos (Jornal De Fato), do dia em que seu avô falecera, deitado numa rede azul, esquecido dos
passarinhos nas gaiolas. As descrições da casa, o quintal com todas aquelas
árvores, o portãozinho de losangos brancos, e o pombo que visitou a casa
durante sete dias seguidos, como um sinal divino de que seu avô estava voando
em outras dimensões da existência... À medida que ia lendo, tais elementos
suscitavam-me a lembrança da casa de meus avós maternos, na Fazenda Camponesa,
em Umarizal, um dos cenários mais idílicos de minha infância.
Meu avô, Sérvulo, lá chegara bem
jovem, vindo de Brejo do Cruz, na Paraíba, oferecendo a meu bisavô seus
serviços de construtor de cercas de pedra. Mal chegou e foi se enamorando de
minha avó, Eulira, filha do patrão. Nascida em 1916, no mesmo ano em que tinha
sido erguida a parede da barragem - até hoje está lá, incrustado nas pedras,
"Camponesa, 1916" -, minha
avó contraíra paralisia infantil, o que lhe rendeu o encurtamento e a
deformação da perna esquerda. Não sei se
esse fora o motivo pelo qual ela foi ficando solteira, enquanto via as irmãs
todas se casarem e constituírem família. Fato é que, quando conheceu meu avô,
em meados da década de 1940, não demorou muito para que se unissem em
matrimônio e passassem a morar numa casa simples, de paredes caiadas e sem
alpendre, não muito longe da casa-grande.
Minha mãe sempre conta suas
histórias de infância, e é de tanto ouvi-la narrar as traquinagens das crianças,
os trabalhos pesados no roçado de algodão, feijão e milho, a fartura dos tempos
de inverno, com a casa de farinha e o engenho em plena atividade, além das muitas
situações de choro causadas pelas surras que meu avô infligia aos filhos - uma desobediência
ou má-criação sequer, o chinelo e a corda entravam em ação! -, que eu vivo,
imaginariamente, numa Camponesa que não conheci. Minha mãe foi minha primeira
contadora de histórias; estórias eu só vim conhecer quando comecei a ir à
escola. Mas uma coisa são as histórias imaginadas, outra são as histórias
vividas. E é dessas que mais gostamos de falar, porque recordar é viver de
novo, como bem diz o adágio popular.
A casa de meus avós tinha uma grande
sala, com muitos armadores para caber as redes de todos os filhos e netos,
portas e janelas de madeira, com tramelas que eu adorava ficar girando, uma
máquina de costura, com o pedal onde minha avó punha seu pé sadio e costurava
para toda a família, a muleta recostada ao lado e, logo acima da máquina, uma
fotografia monocromática do casal, no dia de seu casamento. Na parede de frente
à porta, uma imagem do Sagrado Coração de Jesus e outra do Sagrado Coração de
Maria abençoavam a casa, e, num recanto, o rádio de meu avô sobre uma mesinha e
algumas cadeiras de ferro arredondadas, com pequenas almofadas servindo de
assento, em frente a uma velha TV em preto-e-branco.
O quarto de minha avó, ao lado da
sala, tinha um cheiro característico de lavanda, o perfume preferido dela.
Havia um baú de madeira e um pequeno caritó onde ela dispunha os santos de sua
devoção, uma cama com gavetinhas acopladas nas laterais e um guarda-roupa
pequeno, que, quando aberto, parecia entontecer os sentidos com aquele cheiro
agradável que emanava. Mas o quarto seguinte, esse era o preferido dos netos,
pois guardava os baús onde meu avô colocava as gostosuras trazidas da feira -
as bolachas e as broas eram as minhas preferidas! De lá a gente sentia melhor o
cheiro da galinha cozida, do arroz da terra, do pirão, do feijão de corda com
farinha e coentro que minha avó cozinhava em seu fogão a lenha.
A cozinha, aliás, era a alma da
casa, seu teto baixo que deixava o ambiente mais aquecido, os feixes de lenha
dispostos atrás da porta, os potes de barro com água fresca de chuva, tampados
com pano de algodão preso em tiras de elástico, os copos de alumínio pendurados
em ganchos na parede, as galinhas empoleiradas nas janelas, curiosas e gulosas,
pedindo milho a toda hora, os pintinhos lá fora, numa algazarra festiva, o pé
de laranjas doces e suculentas avistado da cozinha, os cercados onde os
galos-de-campina coloriam a paisagem com sua cabecinha vermelha...
Nesse ambiente onde passava minhas
férias escolares inteiras, via meu avô, perambulando pela casa à procura de seu
chapéu de palha, muito cedo, para ir até o curral ordenhar as vacas. Ele
passava por baixo de nossas redes, com a camisa desabotoada até o meio do
peito, a calça de brim amarronzada, de cujo cós pendia um molho de chaves que
tilintavam na cadência de seus passos - as chaves dos baús de bolacha e broa,
as chaves do armazém, e outras inúmeras chaves que eu nunca soube que portas
abriam. Não tenho lembrança de meu avô sério e carrancudo, pelo contrário,
lembro-me dele sorrindo, brincando com os netos: colocava-nos no colo e cantava
músicas, deixava-se cuidar por nós, que fingíamos tirar piolhos de sua
cabeleira branca e estalávamos as unhas como se os tivéssemos matando,
levava-nos para o roçado e nos punha em fila para depositar as sementes de
feijão nas covas que ele ia abrindo à nossa frente, permitia que ficássemos
agarrados à cancela para vê-lo tirar o leite das vacas, que ia espumando para
dentro das nossas canecas. Mas andar em sua bicicleta de ferro, com farol aceso
a dínamo, isso ele não nos permitia, não tanto pelo ciúme que tinha dela, mas
pelo medo de acontecer algum acidente conosco, naquela bicicleta que só ele
podia sustentar de pé.
"A casa é nosso canto do mundo. Ela é, como se diz frequentemente, nosso
primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do
termo. Até a mais modesta habitação, vista intimamente, é bela." Essas
palavras, escritas por Bachelard em seu livro A poética do espaço, dizem o que todos nós sabemos: não importa o
tamanho nem a suntuosidade da casa, importam mesmo as memórias que ela imprime
em nós, nascidas das relações afetivas entre as pessoas que nela moram ou por
ela passam. Para encerrar a conversa, que as emoções já querem transbordar
liquefeitas dos olhos, tomo novamente o discurso do filósofo e poeta francês,
quando diz que "nunca somos
verdadeiros historiadores, somos sempre um pouco poetas e nossa emoção traduz
apenas, quem sabe, a poesia perdida [...] pelos poemas, talvez mais do que
pelas lembranças, tocamos o fundo poético do espaço da casa" e
concluo, por sugestão dele mesmo, com um poema que fiz para esse espaço mais do
que vivo em mim:
Poema em branco
A alvura
da toalha sobre a mesa
e do leite na caneca,
do beiju de goma fresca
e do pão do forno a lenha,
do guardanapo estendido
marcando a segunda-feira,
do avental feito de saco
de algodão, casa do açúcar,
esse açúcar também branco
como o dia se escoando
pelas frestas entre as telhas,
entre os olhos alviclaros,
entre as nuvens dos cabelos
que à manhã se misturaram.
Ah, alvura, branca alvura
que não há mais do outro lado
desta mesa à qual me sento
com meus lábios ancorados
nessa transparência viva,
cor exata do passado!...
Kalliane Amorim
Kalliane Amorim
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