Uma freira perguntou certa vez ao
então reverendo Francisco de Sales, que mais tarde seria canonizado, o que ele
faria, se pertencesse à mesma ordem religiosa da freira, para se tornar
perfeito, ao que ele respondeu:
“Minha cara filha, parece-me
que, com a graça de Deus, eu me poria muito atento para praticar as pequenas e
simples observâncias que são da regra desta casa. Guardaria bem o silêncio e,
às vezes, também falaria... Falaria bem lentamente... Fecharia e abriria as
portas muito lentamente... Caminharia lentamente, pois, minha cara filha, Deus
e Seus anjos nos vigiam sempre e têm um amor extremo por aqueles que agem bem.
Parece-me que eu seria muito feliz e nunca me apressaria... Na medida do meu possível,
procuraria fazer o melhor para manter-me na presença de Deus e fazer todas as
minhas ações por Seu amor”.
Leio e releio as palavras do
santo, no intuito de fazê-las reverberar no mais íntimo de mim, acendendo aquele
facho de luz tão necessário para alumiar o caminho e, assim, acertar onde e de
que modo meus pés precisam pisar. Vejo, porém, que essa receita de perfeição
contraria tudo o que o mundo nos apresenta como paradigma de vida e exige,
portanto, a sã ousadia de contestar, de perder para ganhar, de ser estigmatizado
de louco quando o que se está buscando é um pouco de lucidez e verdade. Mas não
é essa exatamente a proposta do evangelho de Cristo, estar no mundo sem
pertencer a ele?
Francisco diz que se “poria muito
atento” na realização de tarefas pequenas e simples. Quem descobre a via da
atenção no que é pequeno e simples, chega àquele ideal da fruição verdadeira
dos momentos, do estar por completo, de corpo e alma, naquilo que se propõe a
fazer, seja simplesmente servir um café a alguém, aguar as plantas no quintal
de casa, arrumar a própria cama, tirar o prato da mesa, e toda a infinidade de
ações que realizamos ao longo de cada dia. Fernando Pessoa, o poeta português,
diria isso de outra forma, na voz de seu heterônimo Ricardo Reis:
Para ser grande, sê inteiro:
nada
teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe
quanto és
no mínimo que fazes.
Assim, em cada lago, a lua
toda
brilha, porque alta vive.
Ora, para chegar a tal nível de
atenção, é necessário aquietarmos o espírito, o que só conseguimos à custa do
sacrifício de aquietar os sentidos. Estamos cercados de ruídos de toda natureza.
São propagandas incentivando o consumo desenfreado, são músicas frenéticas acelerando
nossos passos e nossos batimentos cardíacos, são aplicativos por meio dos quais
manifestamos nossas carências, exigindo dos outros uma disponibilidade doentia.
E seguem nossos olhos, e mãos, e ouvidos, e língua, descentrados,
desorientados, absorvendo um milhão de informações e adoecendo por não poder o
hardware comportar tanto lixo.
Precisamos parar, fechar os
sentidos ao bulício do mundo a fim de tentar apreciar um outro mundo, esse que
carregamos conosco, esse que é único, e que, mesmo se transformando
continuamente, necessita de verdades eternas sobre as quais possa se erguer.
Guardar o silêncio, falar
lentamente, mover-se lentamente no mundo, nas relações com as pessoas... Parece
algo tão distante de nós, agitados que somos tantas vezes, especialmente quando
lidamos com o que não se submete a nosso controle, à nossa ilusão de controle,
na verdade.
Seria um exercício proveitoso
aprender com o poeta Manoel de Barros, que passava os dias quieto, no meio das
coisas miúdas. Num de seus poemas, Aprendimentos, ensina:
Sócrates fez o seu caminho de
cultura e ao fim
falou que só sabia que não
sabia de nada.
Não tinha as certezas
científicas. Mas que aprendera coisas
di-menor com a natureza.
Aprendeu que as folhas
das árvores servem para nos
ensinar a cair sem
alardes. Disse que fosse ele
caracol vegetado
sobre pedras, ele iria gostar.
Iria certamente
aprender o idioma que as rãs
falam com as águas
e ia conversar com as rãs.
E gostasse mais de ensinar que
a exuberância maior está nos insetos
do que nas paisagens. Seu
rosto tinha um lado de
ave. Por isso ele podia
conhecer todos os pássaros
do mundo pelo coração de seus
cantos. Estudara
nos livros demais. Porém
aprendia melhor no ver,
no ouvir, no pegar, no provar
e no cheirar.
Chegou por vezes de alcançar o
sotaque das origens.
Se admirava de como um grilo
sozinho, um só pequeno
grilo, podia desmontar os
silêncios de uma noite!
Eu vivi antigamente com
Sócrates, Platão, Aristóteles —
esse pessoal.
Eles falavam nas aulas: Quem
se aproxima das origens se renova.
Ouve... Não tenhas medo...
São as mais doces ordens do Senhor a seu povo, nas Sagradas Escrituras. Deus
deseja que usemos nossos sentidos para nos achegarmos a Ele, porque somos
matéria, e só por meio da matéria é que experimentamos o que está para além
dela. Deus é o poeta, e sua fala ressoa nos versos de Manoel: aprendemos melhor
no ver, no ouvir, no pegar, no provar, no cheirar, no experimentar a presença daquele
que, ocultando sua face, revela sempre a delicadeza de seu coração em todas as
coisas. Não é uma tela plana e fria que vai substituir a contento tais
vivências, não é...
Parece que seríamos muito felizes,
e nunca nos apressaríamos, se nos decidíssemos, firmemente... E viveríamos na
presença de Deus, e faríamos tudo em resposta ao seu amor, sem nos preocuparmos
se o mundo passasse por nós com o rugido de seu motor ultraveloz, levantando a
poeira atrás de si, tentando alcançar um horizonte sempre mais distante, enquanto
nós, calmamente, caminharíamos, um passo após o outro, apreciando a paisagem,
abaixando-nos para tratarmos com as pequenas criaturas de igual para igual, deslocados,
talvez, porém muito convictos de estarmos na direção mais acertada: de nós para
nós.
Kalliane Amorim