terça-feira, 14 de janeiro de 2020

Desapego: quando a solidão exulta

    
Aqueles que me amam neste mundo procuram a todo custo manter-me preso. Teu amor, porém, muito maior que o deles, é diferente, pois tu me conservas livre.
        Eles temem que eu os esqueça, e por isso nunca me deixam sozinho. No entanto, passam-se dias e dias, e tu não apareces.
        Mesmo que eu não te invoque em minhas orações, e mesmo que não te conserve em meu coração, teu amor por mim sempre fica esperando meu amor.
 (Tagore, em Gitanjali)



Encontrei o volume de bolso "Poesia Mística - Lírica breve", do poeta indiano Rabindranath Tagore, em meio aos livros de uma livraria católica. Não conhecia quase nada dele, apenas o mínimo para saber que era um "poeta místico", que teve contato com o escritor e pintor libanês Kahlil Gibran e foi traduzido para o português inicialmente por nossa poeta Cecília Meireles, a qual muito o admirava.

Nascido em Calcutá em 1861, Tagore cedo se revelou poeta, músico, teatrólogo, contista, filósofo, educador, profundamente identificado com a natureza - o que não é tão estranho se levarmos em conta a cultura oriental, na qual o homem compreende que é parte da natureza - e aberto ao infinito, ao mistério presente em tudo o que existe, numa incansável busca, pela palavra, de encontrar a unidade na pluralidade das coisas. Sua poesia se mostra como uma profunda reverência ao Criador por meio da percepção que tinha dos seres, das coisas, das situações.

No prólogo da coletânea, assinado por Ivo Stoniolo, também tradutor da obra, há uma passagem que resume bem o que foi a pessoa e a poesia de Tagore:


"Desde a adolescência foi capaz de ver e proclamar a grandeza que se esconde na pequenez, a luz no coração da treva e os grandes paradoxos da humanidade: o triunfo na derrota, a beleza no feio e, principalmente, a amizade e a predileção que Deus tem pelos pobres, humilhados e perdidos. É que o Mistério não está além ou acima de nosso mundo. Está no mais íntimo e profundo de nós mesmos. Só não o descobrimos porque não somos capazes de nos abaixarmos o suficiente para uma reverência total, chegando ao misterioso ponto em que, de uma vez para sempre, tornamo-nos capazes de ver tudo e todos com os olhos do próprio Mistério. Rabindranath foi capaz dessa reverência, e sua obra é como um guia para também nós chegarmos ao ponto da visão transfigurada."


Gitanjali (pronuncia-se guitándjali), obra que abre a coletânea, é a mais famosa coleção de poemas do autor e rendeu-lhe o Prêmio Nobel de Literatura em 1913. O título é um composto de "git", "música", e "anjoli", "oferecer". Portanto, significa "uma oferta de canções", mas, como a palavra para oferecer, "anjoli", tem uma forte conotação de devoção, o título também pode ser interpretado como "oferta de oração em música", “oferta de louvores” ou "oferenda lírica", como o próprio autor esclarece.

Hoje escolhi a canção 32 para ler e refletir, porque ela trata de algo que, para nós, se constitui frequentemente num obstáculo aparentemente instransponível: nossos apegos afetivos.

A Sagrada Escritura diz: "Não quiseste sacrifícios nem holocaustos, mas formaste-me um corpo". Somos os únicos seres dotados de corpo e alma, somos matéria e espírito amalgamados. Temos um corpo, e é por meio deste corpo que apreendemos o mundo. Nossos sentidos são a porta de entrada das realidades materiais: vemos, tocamos, ouvimos, sentimos, e tudo que se nos apresenta reverbera em nós e vai constituindo nosso ser. Porém, não somos apenas animais, movidos pelos sentidos e pelos instintos. Temos alma, temos em nós o sopro de Deus, de forma que todas as coisas que nos chegam pelos sentidos passam por este lugar de nosso ser. A questão é se estamos atentos ou não...

Se este mundo é o único mundo que, de fato, conhecemos, no sentido original da palavra, é natural que nos apeguemos às coisas e às pessoas, que tenhamos, egoisticamente, um sentimento de posse em relação a tudo. Ao mesmo tempo que queremos possuir, também desejamos ser possuídos: queremos o afeto dos outros, queremos ser lembrados, queridos, estimados, bem conceituados. Ficamos desapontados se no dia de nosso aniversário não se lembrarem de nós, se não nos cumprimentarem efusivamente por nossas conquistas, se não perceberem nossos esforços. Há quem se entristeça se não receber uma mensagem imediata  no celular em resposta ao que se falou, ou mesmo se não for acordado, obrigatoriamente, com o pontual beijo de bom dia por parte de seu cônjuge, mesmo que este não tenha tido a melhor das noites, ou ainda se não tiver suas vontades prontamente atendidas.

No entanto, nem é necessário um aprofundamento de espírito, basta mesmo a inteligência para percebermos que tudo ao nosso redor, inclusive as pessoas que estimamos, é efêmero e falível. A qualquer momento, poderemos ferir e decepcionar os outros. A qualquer momento, também eles podem fazer o mesmo conosco. E a qualquer momento, podemos passar. E o que teremos feito, além de tentar aprisionar as coisas e as pessoas?

Talvez a nossa dificuldade em aceitar o amor de Deus é exatamente porque o que conhecemos do amor se limita, invariavelmente, à nossa experiência de amor. Acabamos acreditando que Ele nos ama como nós amamos, que Ele quer nos aprisionar. Se assim fosse, Ele não seria quem é e negaria a si próprio naquilo que tem de mais essencial, a liberdade.

Tagore começa o poema expondo exatamente isso:


      Aqueles que me amam neste mundo procuram a todo custo manter-me preso. Teu amor, porém, muito maior que o deles, é diferente, pois tu me conservas livre.


Essa tensão entre a liberdade e o aprisionamento no que tange ao amor se sustenta, para nós, numa linha muito tênue. Porque o amor quer cuidar, quer estar perto, quer proteger, mas sabe que, ultrapassando a justa medida, deixa de ser amor e se torna opressão. O amor pressupõe a liberdade, e esta não existe sem sofrimento, porque implica em deixar sangrar um pouco de si para ver o outro caminhar sozinho e, nesse caminho, muitas vezes se ferir, cair, refazer-se e reinventar seu jeito de caminhar.

Fico pensando em Deus, contemplando suas criaturas, seus filhos. Cercando-nos de cuidados, protegendo-nos, olhando-nos silenciosamente e aguardando que, na liberdade com que nos criou, olhemo-lo de volta e, igualmente silenciosos, ofereçamos-lhe um sorriso de quem está de acordo...

Mas, pobres de nós, como encontraremos a justa medida, como vamos lhe sorrir de volta se nossas atenções estão atreladas a este mundo e somente a muito custo conseguimos, em instantes ínfimos, essa capacidade de “ver tudo e todos com os olhos do Mistério”?

É preciso treinar os sentidos, habituá-los ao silêncio e à solidão nos quais os véus e as máscaras caem por terra e nos permitem ver a face da verdade, convictos de que essa visão transfigurada não advém tanto do esforço pessoal, como da graça que nasce dessa abertura ao divino. Contudo, estamos mesmo dispostos a permanecer quietos, sozinhos e em silêncio? Estamos dispostos a permitir que os outros fiquem assim também?


Eles temem que eu os esqueça, e por isso nunca me deixam sozinho. No entanto, passam-se dias e dias, e tu não apareces.


O poeta explicita a carência afetiva, própria da condição humana, e a dor de querer estar sozinho para esse encontro com o Mestre e ser impossibilitado pelo incômodo da presença humana, que, de fato, é incapaz de suprir os anseios mais profundos da alma. Por outro lado, sabendo da liberdade como princípio do amor, atesta a ausência daquele a quem ama. Não parece se tratar tanto de um lamento, mas da convicção de que, sendo de naturezas e realidades tão distintas, nem sempre o encontro entre o homem e Deus se dá de modo a contentar o coração humano.

Não “aparecer” não significa, necessariamente, não estar presente. É muito possível se estar presente e não se revelar a alguém em algum lugar... É muito possível estarmos sós e não nos encontrarmos nem conosco... O estar só pode ser amedrontador, mas pode nos libertar também, se damos o passo necessário e ouvimos a voz do Mestre: “Não tenhais medo, sou Eu”.

Na passagem final do poema, a profissão de fé, a convicção dessa presença cheia de amor que também nos quer para si, também deseja nos possuir, mas livremente, sem qualquer coação, aguardando de nossa parte a vontade de corresponder:


     Mesmo que eu não te invoque em minhas orações, e mesmo que não te conserve em meu coração, teu amor por mim sempre fica esperando meu amor.

Ah, essa convicção de que há alguém que nos olha, nos ama, nos espera... Alguém que quer que nossas afeições sejam orientadas a ponto de usufruirmos de tudo sem a nada nos apegar, ter como se não tivéssemos, viver como se estivéssemos de despedida... Não somos capazes, se o próprio amor não nos vier em auxílio.

Outro dia, conversando com um padre amigo meu, falávamos dessa dificuldade em nos desapegarmos de nossos afetos. Ele me relatava o apego que sentia por seus livros, não conseguia se desfazer deles, emprestá-los ou doá-los. “Imagine dos meus afetos!”.

Muita gente sente o mesmo, seja por livros, por vinis, por sua coleção de selos ou de super-heróis. Outros se desfazem facilmente de tudo isso e muito mais, fazem longas faxinas e doam roupas, calçados, móveis, dão de suas próprias economias em vista do bem alheio. Até mesmo do corpo abrem mão, têm membros e órgãos amputados, porque “a vida vale mais do que o corpo”.

Porém Deus, que não se cansa de nos ensinar amorosamente, diz que “não tem onde recostar a cabeça”. Por que, então, quereríamos nós desfrutar disso? É doloroso abrir mão da companhia das pessoas a quem nos apegamos ou que se apegam a nós, mas somente enquanto não as vemos sob nossa ótica egoísta. No segundo capítulo de “Só Deus basta”, Slawomir Biela afirma:


A tentação de esperar receber afeto, compreensão e dedicação apenas humanas da pessoa querida sempre volta. [...] De fato, toda a amizade humana se baseia no princípio de que o amigo nunca nos faltará, quando viermos necessitar de sua ajuda. Contudo, esta ideia é pura fantasia, porque fiel e infalível é unicamente Deus, pois o homem, se alguma vez chega a sê-lo, só o consegue por ação de Deus e de acordo com Seus desígnios. Quando Deus nos liberta dos apegos humanos, pode nos deixar ver, com toda a evidência, a fraqueza desse instrumento, do qual Ele, até ao momento, vinha se servindo, como nos querendo dizer: Eu sou o seu apoio e não essa pessoa.”


Isso não quer dizer que tenhamos que ser eremitas e nos retirar por completo da presença humana. Apenas que precisamos cultivar nosso afeto pelas pessoas de forma saudável, enxergando nelas um presente divino para que cresçamos espiritualmente. Pensar, sentir e amar à maneira de Deus não está ao nosso alcance, mas nos é possível se reconhecemos nossa frágil condição e permitimos que Ele seja em nós, como o fez Maria, como o fizeram os apóstolos, como o faz tanta gente anônima pelo mundo...

Estar só é condição necessária para perceber que há uma companhia melhor que todas as outras. Com ela, é possível cantarmos como o profeta: “exulte a solidão e floresça como um lírio!”. Só ela nos abre os olhos para o mistério que está no mais íntimo de cada um, direcionando-nos a uma afetividade ordenada, a fim de que encontremos a paz e a riqueza nos relacionamentos.




Kalliane Amorim

           

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