sábado, 30 de maio de 2020

Dentro da tarde


O vendedor de frutas
seguia pelo centro da cidade.
De seu carrinho de duas rodas,
pitombas e cajaranas,
seriguelas e umbus-cajás,
mangas, cajus e bananas
perfumavam de amarelo
aquela tarde acinzentada.

Não sabia o vendedor de frutas
que atrás dele eu caminhava
e observava as suas mãos,
suas mãos tão calejadas,
e olhava para os seus braços,
seus braços tão enervados,
e não podia deixar de mirá-los
sem mirar a mim mesmo.

Não foi preciso ver o seu rosto
para que nele eu me encontrasse,
e pensasse que poderia
ter-lhe dado um boa tarde,
ter-lhe comprado algumas frutas,
ter-lhe dito qualquer coisa
sobre as chuvas tão escassas,
ou mesmo lhe perguntado
sobre como ia seu dia,
se acaso saberia
me ensinar como escolher
uma fruta, madura e doce,
só em ver.

Mas atrás dele eu caminhava,
com meus bolsos bem vazios
de moedas e palavras...
Talvez numa outra tarde,
amarela e ensolarada,
eu o encontre novamente,
e nos vejamos face a face,
e possamos conversar,
seriamente, amenidades,
como convém aos homens
que se encontram dentro da tarde.




Kalliane Amorim 

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Jogos poéticos - A rede - Parte 1

Ah, a rede... Nos versos do poeta potiguar Jorge Fernandes, em seu Livro de Poemas, a rede é...

Embaladora do sono...
Balanço dos alpendres e dos ranchos...
Vai e vem nas modinhas langorosas...
Vai e vem de embalos e canções...
Professora de violões...
Tipóia dos amores nordestinos...
Grande... larga e forte... pra casais...
Berço de grande raça


Guardadora de sonhos...
Pra madorna ao meio-dia...
Grande... côncava...
Lá no fundo dorme um bichinho...
— ô...ô...ô...ôô...ôôôôôôôôô...

— Balança o punho da rede pro menino durmir...


De elemento identitário pessoal/regional, a rede passa a símbolo de brasilidade nesse poema em que as reticências garantem a construção da imagem quase alada da rede, em seu balanço lânguido e preguiçoso.

E no verso-e-prosa dos que fazem a confraria Café & Poesia, que seria a rede?


MINHA REDE
(Marlene Maia)

Na minha rede artesanal ,
Deleito-me em preguiça. 
Nela balanço os meus sonhos ,
Nas suas varandas, me envolvo, 
Curtindo suas delícias. 

Rede de tantos carinhos,
De dengos e aconchegos,
Descanso do meu corpo cansado 
E acalanto das crianças 
Com as cantigas de ninar. 

Minha rede traz saudades  
De contemplar o luar
Nas noites de lua cheia,
Na imensidão do mar,
Pela fresta da janela que clareia 
Um recanto do meu lar. 

Balanço a rede escutando  
A chuva lá fora cair 
Sobre o piso de chão batido -
Dá vontade de dormir. 

Minha rede é acolhedora 
No seu ninar envolvente,
Rede que me faz sonhar,
Traz-me alegrias na mente. 

Vou desfiando ilusões  
Na rede, com todo prazer.
Por mim não será esquecida 
A minha cama de punho.

Nos armadores da vida,
Talvez bem mais colorida, 
Noutra rede vou viver.



NO BALANÇO DA REDE
(Vanda Jacinto)

No balanço de uma rede,
Sempre desejo estar.
Mas com medo de uma queda
Deixo o desejo para lá…

        Nada é mais preocupante, para mim, do que a ideia de ter que dormir em rede.
Dia desses, recebi um convite para assistir a posse de uma amiga em uma Academia, no interior do Ceará.
Por desconhecer a estrada e a cidade,  recorri ao amigo “Google”, para melhor me situar. Diante das informações, decidi pernoitar  evitando pegar a estrada à noite.
Já estávamos, eu e o meu esposo, mais ou menos resolvidos, quando a nossa amiga ofereceu estadia na casa da sobrinha dela. Educadamente agradecemos e dispensamos a oferta. Contudo, ela insistiu tão carinhosamente, que sequer ficou brecha para recusas. Aceitamos.
A partir daí, começou o meu aperreio, pois tenho o péssimo hábito de sofrer com antecedência, pensando nos prós e contras.  Imaginei situações mil.
Sabendo que a família toda dela estaria presente à cerimônia – isso, incluindo os parentes que residem em outras cidades -, fiquei imaginando, como a anfitriã acomodaria tantos convidados.   Haveria cama suficiente para todos? Sim, porque eu não durmo de rede, nunca dormi! E se a única opção fosse essa?
Angústia me definia naquele instante.
Desejosa de não mais sofrer, decidi que, se não houvesse jeito, arrumaria uma saída qualquer. A pousada “O Bastião” -resultante da pesquisa,  entrou no foco principal.
Não minto, fui dormir preocupada com o dia seguinte. A rede armada, com certeza, foi o último pensamento da noite. Não deu outra, sonhei com o meu esposo me ensinando como deitar numa rede. E era tanta fofoca, que de fato, no sonho quase caí da famigerada rede.
Acordei assustada me debatendo. Graças a Deus foi só um sonho! Ou um pesadelo, não sei… O coração dava  mil pulos dentro do peito.
  Definitivamente, dormir de rede, é um  requisito nordestino que, por medo  nunca fiz questão de aprender. Até comprei algumas redes e tentei usufruir do balanço, mas só em pensar em quedas, resolvi  guardá-las no fundo do baú – literalmente!  
Na última mudança de residência,  dei todas de presente!
Até já me sentei numa rede, armada a dez centímetros do chão. Porém, sinceramente, esse é um apetrecho que não me seduz! Aceito a compreensão daqueles que não vivem sem ela. 
Mas, voltando ao assunto primeiro... Chegamos à casa da nossa da nossa anfitriã, onde fomos muito bem recebidos. Na verdade, uma festa nos aguardava!  Mal colocamos as malas no chão, já fomos arrastados para a grande copa. A mesa já estava posta com bolos, pães, tapiocas e o famoso  cafezinho. Nessa tarde,  além de um bom papo, tínhamos  ao vivo e a cores, nada mais nada menos  do que a presença do nosso grande poeta Antônio Francisco.
Conversa vai, poesia vem, alguém do grupo  elogiou e agradeceu a acolhida e principalmente o tamanho da casa, o que culminou num convite para um “hometour”. E lá fomos nós…
O meu olhar ansioso,  vasculhava cada cômodo à procura de cama, claro; até que uma parenta dela falou de um enorme salão no andar superior, onde havia armadores para mais de cem redes, utilizadas para acomodar os visitantes. Quase tive um troço.  Imediatamente meu pensamento foi para o Bastião – a Pousada (risos).
Meio sem graça, continuei o desbravamento do espaço, até dar de cara com  o espaço das redes. Armadores por todos os lados...Desci meio desorientada.
Entretanto, para o meu contentamento, quando voltei à copa, uma das secretárias me disse: “Coloquei a sua bagagem lá no quarto em que ficará acomodada”.
Mal tive voz para agradecer pela informação e pela gentil atitude da moça, tamanha a felicidade que me invadia.
Mais que de pressa, quis saber o local, o que me foi indicado prontamente. Gente, vocês nem imaginam... Havia sido reservada a  “suíte master”, para mim!
Senti vergonha dos meus pensamentos e juízos maus. 
Verdade seja dita, eu me adequei a muitas coisas, destas paragens em que vim morar, mas ainda trago arraigadas certas tradições e raízes de minha cultura – dormir em cama é uma delas. E raízes, vamos combinar, são bem firmes no chão. Pelo menos, as minhas...



NA REDE, AS SAUDADES...
(Dany Santos)

A lua desaparecia ciumenta por trás das casas... Pela fresta da janela, de um quarto humilde, ela observava o nascer do sol e o reinício do cotidiano das pessoas. Enquanto observava, pensava consigo mesmo: "Adoraria ter minha mocidade de volta." Dizendo isso e caminhando com dificuldade, apoiou-se, penosamente, numa rede cinza - quase toda gasta - que estava armada em um canto de parede daquele cômodo. Ao sentar nela, olhou para suas mãos trêmulas. De seus olhos duas lágrimas escorreram. 

Ela, forçando um sorriso tímido, passou a conversar com a solidão. Lembrou-se, com muita nitidez, o dia do seu casamento. “Eu, de certo modo, era a noiva mais linda desta cidade. Todos reparavam o viço da minha pele e do rosado intenso dos meus lábios. Lábios que beijei, e acalentei, cada um dos meus filhos. Lábios que cantaram canções de ninar, balançando-os em suas redes. Preocupada com o porvir, trabalhei com muito esmero para dar-lhes um futuro digno”, relembrou consigo mesma.

Ainda sentada na rede de tantas histórias, recordou as cidades que visitou, os bailes que participou, o doce e gentil companheiro de quase meio século que, deitado naquela mesma rede, descansou eternamente. 

Hoje vivendo o abandono da velhice, ela ainda teve forças para refletir: "Só a constante solidão é minha aliada. Se pelo menos a morte me visitasse, teríamos muito o que conversar, quem sabe ela me levasse por aí afora para ver o que não consigo enxergar olhando pela fresta da janela..."




TIBAU E SEUS ENCANTOS

(Dulce Cavalcante)

 

A rede armada no alpendre

alça voo, sai dos punhos,

voa, solta dos cordões e vai,

visita as areias,

as ondas crespas

e as falésias coloridas.

Estão todas no lugar.

E as emoções?

Encantadas no sonho de outrora.

Olhos abertos contavam os caibros,

as telhas,

mosaico de ilusões

perdidas,

enroscadas

nas varandas de crochê.

O livro  "Ostra feliz não faz pérolas"

descansa sobre o peito.

E os óculos?

Debaixo da rede, nada veem. 



BALANÇO

(Kalliane Amorim)


Numa rede de varandas,

o teu sonho se balança,

levado por minha mão...


                    A tarde vai se deitando,

                    e eu aqui, cantarolando,

                    ninando teu coração...


Teu corpo vai descansando

para outras brincadeiras

que amanhã florescerão...


                    E serás meu cavaleiro,

                    meu anjo, meu violeiro,

                    meu pirata, meu capitão...


Remarás teu próprio barco,

criarás as tuas asas,

acharás tua direção...


                    Mas sempre serás menino,

                    balançando-se na rede

                    que armei no meu coração...




A REDE

(Ieda Chaves)


Rede de dormir,

para descansar,

aproveitar a preguiça,

sonhar, pensar,

planejar, namorar,

poetizar...


Rede de relacionamentos,

as famosas redes sociais...

Rede de TV

para informados nos manter.


Rede de vizinhos

para aproximar.

Rede de proteção

para não arriscar

a vida familiar.

Rede de conexão

com a internet.

Rede de pesca

para alimentar.


De todos os tipos de rede,

prefiro a rede de deitar-se.

Aquela que descansa o corpo

e que nos faz relaxar,

para dormir e sonhar.


Rede para acalentar os filhos,

rede para namorar,

rede para cantar,

rede para se balançar.


De todas as formas

de usar a rede,

a que melhor me cativa

é aquela que me faz

sonhar acordada.




A REDE E A SAUDADE

(Riz Silva)


A rede balançando no alpendre

Fogia em galope a tristeza 

No rec rec da saudade

No frio cinza da fogueira


Em noites de lua cheia

Ardia a chama que subia

Num cochicho de velhas histórias

Que os mais velhos conduziam


O milho sapecado na brasa

As brincadeiras de roda 

Na escuridão do sertão 

Marcados na minha memória 


Embalando a rede armada 

No toco da carnaúba 

Na velha casa de taipa

Onde a infância se curva


Na debulha de feijão

Também quando era de milho

Em volta de um balaio

Todos se reuniam 

E as redes armadas no alpendre 

Para depois se tirar um cochilo.


Foram tempos de alegria

Que guardo na palma da mão

Da rede e das velhas lembranças

Do meu querido e amado sertão.




REDE NO ALPENDRE

(Célia Medeiros)


No alpendre aprazível da praia de Tibau,

Há pouco, na última temporada de verão

Nossa família reunida, balançando em suas redes, 

Os sonhos, a boa prosa; jogando fora os estresses,

Recarregando as energias para a vida e seus reveses.

Embalados pela brisa, música e sorriso,

Varandas esvoaçantes no alpendre

Cheiro de mar, o vento sacudindo os coqueirais,

Eternizando a alegria daqueles instantes.

Nuvens brancas formando as imagens

Que os olhos, vez por outra,

Teimavam em identificá-las...

Numa rede, um balanço, um despertar

Naquela paz tão saudável e familiar,

Desfrutavam de um prazer indescritível...

O que parecia ser mais umas férias de verão

Foi tão somente uma despedida, 

O anfitrião, carismático e tão querido da família

Amante do banho de mar, de uma rede, da alegria,

Que em abril, voou nas asas do vento, 

Fez cair as nossas lagrimas de saudade,

E, se fez estrela que brilhará eternamente sobre o mar.




Jogos poéticos - A mesa - Parte 2

Evocadora de lembranças, memórias olfativas e afetivas, protegida por toalhas de linho ou exposta em suas rugas, requintada ou simples, não importa: a mesa é objeto sagrado em torno do qual se enraíza nossa identidade. As crônicas e poemas a seguir refletem sobre isso. Boa leitura!


A MESA: LEMBRANÇAS

(Ieda Chaves)

Tenho boas lembranças de uma vida inteira, mas as que me trazem gostosas recordações são fatos da minha infância vivida no interior nordestino, na cidade de Portalegre, no Rio Grande do Norte, onde a vida simples foi repleta de amor e sabores.

Da minha fase de criança o que mais me recordo são das mesas fartas, na casa de meus avós e tios, que moravam na zona rural, onde se comia o que era plantado, cultivado e colhido, com parceria e cumplicidade.

Tenho boas lembranças desse tempo no qual aprendi que a qualidade da colheita é resultado do que se cultiva e da forma como se respeita o meio ambiente. A arte de arar a terra, plantar, ver brotar e aguardar a colheita sempre foi um exercício de contemplação e gratidão.

Tenho boas lembranças de um tempo em que se esperava o inverno começar, no mês de janeiro, para em março dar início ao plantio de milho, feijão e mandioca. Vem essas doces lembranças de um tempo em que, ao acordar, a mesa estava posta e, nela, o café e o leite quente (trazido do curral que ficava a poucos metros da casa, e que era fervido segundos antes de ir para a mesa). Para o acompanhamento tinha a tapioca feita na hora (coberta com nata fresca e recheada com ovo caipira que se pegava nos ninhos, ali mesmo no terreiro).

Depois do café tomado havia tarefas a serem feitas. Lembro-me do que mais gostava: separar os grãos de feijão que iriam encher os silos para esperar até a próxima safra e, também, de debulhar milho ou descaroçar algodão para fazer os pavios para as lamparinas que iluminavam as noites de climas agradáveis.

Tenho boas lembranças da hora do almoço. Lá estava, na mesa, um cardápio que agradava meu paladar: feijão (na maioria das vezes temperado com toucinho), arroz de leite e cuscuz. A mistura variava, podendo ser carne de boi, porco ou carneiro, em regra, guisados ou fritos em banha de porco, com sabor indescritível dos temperos caseiros, geralmente, finalizados com coentro e cebolinha (colhidos na horta da casa).

As mesas do almoço de domingo, sempre fartas, eu já podia adivinhar o prato principal: galinha, pato ou guiné (capote ou galinha d’angola), acompanhado do tradicional pirão.

Tenho boas lembranças dos pratos servidos no jantar. Eles ofereciam sabores indescritíveis, como o cuscuz com leite (ou a paçoca), coalhada fresca, mungunzá, batata doce com leite, tapioca e ovo frito, café com leite, e, na época do milho verde, as tradicionais pamonha e canjica.

Não posso esquecer dos sabores das sobremesas artesanais, feitas com produtos e frutos colhidos nos pomares que ficavam aos redores das casas (doce de leite, caju e goiaba).

Sendo que o meu doce preferido era o de gergelim. Havia também frutas frescas da estação as quais eram feitos os sucos de manga, goiaba, caju, maracujá, cajarana, seriguela e limão adoçados com raspa de rapadura (hoje, quando quero fazer o suco com essas mesmas frutas, uso o açúcar mascavo).

A mesa da sala de jantar era o lugar mais sagrado da casa e, a qualquer hora do dia ou da noite estava lá, em uma bandeja forrada com toalhinhas brancas de linho, as guloseimas para saciar a fome. Só era preciso ir lá e “beliscar”. Ah, as gostosuras incluíam bolinhos de goma feitos com nata e coco, rapadura (cortada em quadradinhos), alfenim, batida (de rapadura) e pão de ló.

Tenho boas lembranças de que era em torno da mesa (ladeada por dois bancos de madeira), que ficávamos após as refeições para um dedinho de prosa. Os adultos falavam antes, as crianças depois, mas todos conversavam sobre os assuntos do dia a dia, daquela vida pacata, porém repleta de alegrias.

Nas principais refeições, café, almoço e janta, os momentos eram sagrados e respeito não podia faltar. Isso incluía, desde os horários aos lugares onde se sentar (sendo a cabeceira da mesa o lugar dos mais velhos e do dono da casa). Havia respeito, amor e afeto. Era na mesa farta de comida e, sobretudo, de amor, que nos sentíamos acolhidos, alimentados e abençoados.

Ah! a toalha era xadrez durante a semana e, a de domingo, branca e de linho.



TÃO PERFEITA

 (Dulce Cavalcante)


Essa mesa posta,

tão perfeita,

traz muita resposta

na lembrança quase desfeita.

 

 A mesa posta,

 a toalha desbotada,

os pratos de louça  (na minha visão)

já craquelados,

talheres baratos 

ariados com sabão e areia do rio

davam-lhes brilho e valor.

 

A mesa posta,

os rostos afogueados de ansiedade,

a mãe altiva, dona gentil

do pão de cada dia

que a mesa posta exibia.

O tempo a leva para o altiplano das saudades...

Quero trancar com mil chaves

nesse meu velho “comboio de corda chamado coração”.

 


NAQUELA MESA

(Marlene Maia)


Eu me lembro com saudade da primeira mesa onde fazíamos nossas refeições.

Éramos uma família de 11 irmãos, todos como uma escadinha - a diferença de idade era muito pouca.

Na época, na minha casa não existia mesa na sala de jantar; era na cozinha que a minha mãe preparava a refeição e colocava numa mesinha bem baixinha - uma especie de mesa japonesa. Todos nós sentávamos nuns cubos de madeira com o nome de cada um xilografado, que a gente chamava de cepo de sentar. A mesa era posta com pratos de ágata branca com motivos florais pintados. Eu achava lindos aqueles pratos...

Não usávamos talheres; comíamos de colher e lembro bem que elas eram douradas e bem trabalhadas, que a gente dizia que eram de ouro. Depois do almoço e jantar, todos recolhiam seus cepos e empilhavam-nos lá num cantinho; e a mesa era colocada num suporte na parede para não ocupar o espaço na cozinha.

Ainda hoje recordo essa bendita mesa guardada na memória dos tempos idos. Depois a mesa serviu de decoração para pequenos jarrinhos de condimentos, uma pequena horta que minha mãe plantava.

Aquela mesa deixou muitas reminiscências. 



GRANDE MESA

(Célia Medeiros)


E de repente, vêm à lembrança tempos idos,

Pessoas queridas sentadas à mesa, a boa prosa,

Degustando comidas simples, porém, de sabor indescritível,

Feitas com amor, gesto singelo de bem nutrir.

Quantas conversas trazidas naqueles instantes

Dentro de uma harmoniosa interação

Da família constituída, originada não apenas pelo sangue,

Mas pela acolhida, pelo ato de cuidar e fazer crescer.

Que saudades! Quanto amor envolvido! Esquecer, jamais!

A semente plantada naquele tempo foi transportada

Para uma nova realidade... germinou, cresceu!

Hoje, na mesa posta, são novos rostos, exceto o meu.

Mas repito o ato, tudo aquilo que um dia alguém me deu.

A vida segue, aqui e lá, em algum lugar, uma grande mesa

Novamente vamos formar...



UM CAFÉ, ÀS TRÊS DA TARDE

(Kalliane Amorim)


Rabanadas açucaradas,

rescendendo à canela,

atravessam as três da tarde,

clamando por um café.


A garrafa sobre a mesa

coberta com uma toalha

de tecido estampado

com detalhes em xadrez -

mamãe mesma costurara...


Nossas xícaras já cheias

de café e de conversas,

doces, carameladas,

assim como as rabanadas,

que perfumam a cozinha

e as memórias de nossa casa...


Detenho-me um instante,

contemplando a mesa posta,

o café, as rabanadas,

as xícaras de duralex,

e, sob todas essas coisas,

as mãos de minha mãe:

mãos ágeis de costureira,

mãos limpas de doceira,

zelosas em tantas palavras...


É exatamente assim,

sob doces rabanadas,

em meio à tépida névoa

de um café às três da tarde,

que me acena o teu amor.


Nada mais eu peço, nada,

a não ser essa lembrança,

a não ser teus verdes olhos,

minha mãe,

teus olhos, dentro dos quais

ainda me vejo criança.

 


quinta-feira, 28 de maio de 2020

Jogos poéticos - A mesa - Parte 1

Se uma pia se enche de louça, é porque antes mãos habilidosas prepararam o alimento e bocas ávidas o saborearam, de modo que a mesa onde se serve o pão é tão sagrada quanto a pia que recebe pratos, talheres, panelas e vasilhas cheios de vestígios da fome aplacada. Uma mesa nunca é apenas uma mesa, vista pelo olhar de um poeta: de seus sulcos, outras imagens emergem.  A poesia está servida! Vamos à mesa, vamos às mesas do Café & Poesia!


ALTAR
(Lilia Souza)

Toalha xadrez
Barrada em crochê, 
Um jarro com tulipas
Na ponta de lá.

Do lado de cá
Bule de café,
A jarra de leite,
Um velho açucareiro.

A louça antiga
Disposta em pares,
Com esmero e carinho,
Para o fim da tarde.

Um bolo de milho,
O pão bem quentinho,
Manteiga, geleia,
Um pote de mel.

O pai e a mãe,
A avó e a filha,
O riso, a conversa,
Café em família. 

Em volta da mesa,
Reunião de retorno
Ao ninho do lar.

Contar sobre o dia,
Beber chá de amor,
Alimentar a alegria.

Tecer as lembranças 
Que bordam a vida,
As bem-aventuranças.

Mesa, altar da partilha
Do pão, do afeto 
- Do sempre, a cartilha.



MEMÓRIAS 
(Riz Silva)

A mesa posta,
a história pronta.
E, vez ou outra,
à vida encanta.

Na solidão da mesa,
a história se conta,
dos velhos amigos,
que não mais se encontram.

E quantas mesas
refeitas na história? 
É, alguns partiram,
outros ficaram na memória.

Essa mesma mesa,
que deu abrigo outrora,
vive atrelada ao passado,
resgatando várias histórias.

Os olhos passeiam 
sobre a mesa, recordando
tantos sonhos, projetos
que não viraram história.



REFINANDO O PENSAR
(Flávia Arruda)

A fome aguçada pelas descobertas atiça o degustar do pensar, apura o paladar e sofistica as ideias, ao passo que saboreia as iguarias raras de um ser pensante. 

Provando e provocando sabores e gostos. Assanhando vontades. Desarmando-se e desfalecendo-se ao saborear pratos do conhecimento. Exaltando-se pelas sensações de prazer do petiscar das concepções, dos entendimentos.

Saciando sedes nos sucos da alma, nos líquidos que correm pelos filamentos e abastecem a mente; que impulsionam; interrogam e descobrem o pulsar. Faminto, ávido pela sagacidade, debruça-se sobre a mesa farta, elegante e refinada. Lambuza-se com o mel da sabedoria, embriaga-se com o vinho da prudência; farta-se com as carnes do intelecto e deleita-se com o manjar dos deuses da argúcia do postular.

Sacia-se e, por instantes, a fome adormece. Dará trégua até o próximo banquete, apetecido pelos acepipes das perceptibilidades, acompanhantes do prato principal: o pensar.



A  MESA
(Vanja Reis)

Entre alimentos, conversas e flores,
estás posta...
E, quando, disposta, tens somente 
o necessário para estar...
O teu silêncio é preocupante, 
o teu emudecer ė penetrante.
O teu silencio é uma ciência a desabrochar
gerações, porque és família...
Mesa...Templo a alimentar uma ausência 
sem fim, saudoso retrato de um grito, pueril,
pintado em tons de um olhar cansado.
Mesa...de madeira e alma...
simbiose perfeita: o hoje e o ontem.
Mesa...palco da melhor sobremesa,
Ingrediente adocicado com a melhor poesia.
És, sim, uma sobremesa poética! 
Mesa...de mesa e mesa, és o bar da vida...
Carregas consigo a cumplicidade de um trago
Perdido...pela mais bela companhia.
Mesa...a toalha que te envolve é o manto 
que encobre as minhas lágrimas.
Mesa...Mesa...Mesa...
Sobre ti se esconde a minha história...



MESA E MEMÓRIA
(Ângela Rodrigues)

Mesa posta. 
Mesa farta.
Mesa vazia. 
De todas uma lembrança.
Herança de distantes dias.
Na infância,
fartura, alegria, 
“barriga cheia”
na grande mesa 
da casa grande da fazenda 
que não nos pertencia.
Na adolescência,
muitas vezes,
a fome era a tolha posta 
sobre a mesa vazia...
na mesa grande ou pequena,
de madeira ou chão batido,
sempre que o alimento era servido 
todos comiam com alegria.
Tantas histórias sobre mesa!
Por que lembrar agora
do que um dia faltou
sobre a mesa?!...
Talvez para nunca esquecer,
de agradecer todos os dias,
o alimento e as companhias.

terça-feira, 26 de maio de 2020

Jogos poéticos - A pia - Parte 2

Dando continuidade aos jogos poéticos sobre o tema "A pia", essa nossa companheira inseparável em dias de isolamento social, seguem as produções de outros amigos, integrantes da Confraria Café & Poesia.


PIA

(Vanja Reis)

 

Instável e fria

aquela louça,

do porcelanato

ao anonimato,

no canto quieta, imóvel,

se faz presente,

sequer avalia

a sua serventia.

Seu espaço é gourmet,

do cômodo

faz a sua morada.

 

Da silhueta

em cuba côncava

suas curvas

tão sutis e utilitárias;

e as mãos que a usam

lavam suas impurezas

que se dissolvem

em gestos de delicadeza

na sua rotina diária.

 

Ela  se decompõe

aos prazeres

da limpeza,

da harmonia,

da leveza.

Na esponja e no sabão,

entre espumas,

a lavar os sabores

ali latentes;

a escorrer pela torneira,

a água, fria ou quente,

se esvai pelo ralo;

dia após dia,

dia e noite, noite e dia,

apenas nisso e só isso.

 

Ah!

Enquanto tiver pratos para lavar

menor será a solidão...

 

 

 PIA

(Pe. Manoel Guimarães)

 

Mas, pia...

Falar sobre pia,

Água limpa

E louça suja.

Só vendo...

Não... Só lavando...

E agradecendo.

Porque se a louça tá suja

É porque teve comida pra comer

E água limpa pra lavar.

Privilégio.

Quando tantos não têm louça,

Nem têm água

E não têm pia.

Só fome.

 

 

SENHORA PIA...

(Flávia Arruda)

 

A senhora pia só sabe resmungar, reclama que vive cheia de louça suja, com panelas encardidas, esperando para serem ariadas, copos com restos de sucos e bordas marcadas com batom. No escorredor de inox, a colher de pau partilha divisória com o coador de pano do café, um pouco mais para o lado está a cuscuzeira e a tacha de ferro fundido, usada para fazer tapiocas.

Entabulei um diálogo com a pia, precisaria fazê-la entender a importância de servir uma refeição de qualidade. Separei cada guarnição. Botei os pratos empilhados, recolhi os restos de comida, deixei os copos enfileirados, como numa trincheira, prontos para o ataque de buchas e sabão, juntei os talheres e as panelas, estas, ficaram um pouco mais afastadas. Pedi à senhora pia um pouco mais de compreensão, pois ela teria de ter consciência do seu papel em nossa casa.

Ora bolas, quem já viu uma coisa dessas?

Não era a primeira vez que eu a via amuada, de boca cheia e “esborrotando” sujeiras. Coisa feia! Minha cara, deixe de boca suja, deixe de ser mal agradecida. Quando vais conseguir entender o propósito de encher-te até a tampa? Fazendo-a equilibrar-se em amontoados de louças?

Minha querida, amada e necessária pia, peço-lhe, encarecidamente, que abra sua mente para a representação daquele momento, quando preparava o alimento para a minha família. Prometo recompensá-la. Cada esponjada será em agradecimento ao alimento pensado, feito e partilhado, nutrindo corpos e aquecendo almas com o amor que a cozinha nos permite criar, num laboratório de criação, entre rituais, de pratos, sabores, cores, cheiros, prazeres e devaneios.

Ah, louca louça suja, sua linda! Deixa de piar nessa pia. Afinal, tudo tem uma razão de ser.

 

  

A PIA

(Lázaro Fabrício)

 

A pia,

sob o relento,

a quina quebrada,

recebe a vasilha improvisada,

a ser lavada

a golpes d'água salobra

e enxaguadas pelas lúgubres lágrimas

da mãe aflita,

na agonia de saber que nela só irá

água fervida com açúcar.

É o que há,

garapa,

para alimentar a criança,

naquela noite fria,

de nuvens cendradas

num ciclo que parece sem fim,

um emblemático retrato da fome,

das agruras catalisadas,

penúria pungente

que sem mandar recado chega

da desigualdade escancarada,

pujante, a zombar desvairada...

 

 

 ES (PIA)

(Riz Silva)

 

Depois de encher o “bucho ”,

Que nem sempre é na “godela ”

- Intriga do seu Raí -

Corro e vou lavar as panelas.

 

Aprendi desde pequena

A cuidar da louça suja,

Rendeu-me alguns tapões

Que quase me deixaram surda.

 

Filha de nordestino

Aprende tudo na marra:

Ou o serviço de casa,

Ou o cabo da enxada.

 

Hoje, morando sozinha,

Com liberdade de escolha,

Meu passatempo preferido

É mesmo lavar toda louça.

 

Bem acima da pia

Existe uma janela,

Dela vejo o quintal

E o sol sorrindo pra ela.

 

Eita tarefa tranquila:

Lavar a louça e a pia,

Ver o céu com suas cores,

Enquanto as panelas alumiam.




A PIA

(Ieda Chaves)


Participo de uma confraria cujas pessoas são amigas, alegres, solidárias e incentivam os iniciantes, até os aspirantes, assim como eu, a praticarem a arte literária através da escrita de crônicas e poemas.

A interação desse grupo é tão saudável que somos instigados a escrever a partir de temas sugeridos no espaço do nosso grupo de WhatsApp; sem dúvida, uma forma divertida de estímulo. O tema sugerido neste feriado de 21/04 foi PIA. E eu, para não ficar de fora da brincadeira, tomei coragem de participar.

Quando comecei a ler os poemas, não hesitei, usaria o repertório de saudosismos de minha infância no interior do Nordeste brasileiro, parte morando na zona rural e, depois, na cidade, de onde tiraria o material para a construção de um texto.

Pois bem, em tempos longínquos, nas casas das famílias mais modestas, leia-se menos favorecidas economicamente, as louças eram lavadas não em pia, mas em uma bacia de barro chamada de alguidar, um objeto com forma redonda, feito de barro e polido.

E a partir daí foram muitas as recordações de minhas divertidas iniciativas de aprender a lavar a louça de casa. Explico: por vezes a forma era atrapalhada ao manusear o alguidar, que por ser de barro era pesado e, somado ao volume de água, pesava ainda mais. O resultado é que, como eu era muito franzina, tinha braços finos e pouca força física, ao término da tarefa, no jogar a água suja fora, lá se ia o alguidar junto, espatifando-se no terreiro (quintal). Era certo que além do prejuízo vinham as “ralhas” que levava de meu pai.

Outras vezes era a altura da mesa sobre a qual era posto o alguidar, pois ficava muito elevada para minha pequena estatura; portanto, terminava o serviço com a roupa toda molhada e, nessas ocasiões, era a minha mãe que se incomodava e a minha boa intenção em ajudá-la era minimizada. Mas eu pouco ligava, pois me divertia com a situação.

Após alguns anos, e já morando na cidade, na cozinha da casa tinha pia, de cimento ou de mármore, não me lembro bem desse detalhe, mas o que importa era que a pia cumpria sua função: servir para lavar louças, panelas e utensílios de cozinhar.

Na verdade, a mudança de alguidar para pia mudou pouco a minha habilidade de lavar pratos, pois a torneira era alta e, na maioria das vezes, o chão é que ficava molhado de tantos respingados d’água. Ou seja, foi uma verdadeira saga essa minha vontade de querer aprender a lavar louças.

Ah! Mas o que tirei de proveitoso dessas lembranças foi reconstruir, nas minhas memórias, recordações de um tempo bom, de parcerias familiares, do espírito colaborativo que aprendi e mantenho até hoje.

E, antes mesmo de terminar essa prosa, me lembrei de outro detalhe: naquela época também era comum as pias serem postas em frente a uma janela e, por meio dela, dava para se ouvir o canto dos pássaros vindo dos quintais das casas.

Tenho saudades do que foi bom na minha infância, rica de histórias para contar, pois até hoje conservo, além das lembranças, o esmero no que aprendi a fazer com prazer, sem preguiça ou reclamações, e, entre outras atividades, aperfeiçoei, com tempo, a habilidade para usar a pia sem mais molhar o chão ou minha roupa e, na falta do alguidar e canto de pássaros, uso pias e torneiras modernas e assim lavo a louça ouvindo boas músicas.

Mas, quer saber? Sinto falta mesmo é do canto do sabiá, que me fazia toda louça lavar sem nem ver o tempo passar.


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Ribeira

Quando a Poesia e a Música se encontram, nasce a Beleza. E esta sempre é um caminho de encontro com Deus, se carrega consigo a Bondade e a V...