terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Canção do momento


Vão embora as horas
a mirar do mistério
os luzeiros apagados,
também os passos
entre cortes e papéis
tão bem guardados...

Despedaçam-se
o escudo, a armadura,
forjados sem perdão,
como o peito
ensimesmado,
e os pés encalecidos
nas plumas da ilusão...

O que restou?
Inacabada, o que nos resta, até o fim,
é outra versão.
O que nos resta é, deveras, uma canção,
uma canção meio velada,
cantada sob um sol que ninguém vê
como quem canta a sombra à luz do ser.

Quem vai saber o que afagamos
no secreto do olhar, da voz e das mãos?
Mistérios que se acenam... Morrerão
comigo, contigo, com os que virão,
a palavra e a impressão,
o abrigo que para elas construímos
quando tardam gesto e fala,
e, em silêncio, recordamos
o que somos, até então.

E o que somos?
Talvez a flor acenando sua alvura
na aridez do passado,
talvez o sereno entoando loas
à janela aberta na madrugada,
talvez um sopro acalentando
a rede do menino nem sequer gestado...

Somos mesmo essa canção
dos olhos sobre o que a mão colheu,
esse ouro que brilha entre os cascalhos,
esse pó levantado da terra
esse corpo a se mover pelo sopro de Deus.


Kalliane Amorim

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Quisera


Com palavras, bem quisera
desenhar a formosura
dessas pequeninas flores,
vindas do ventre das chuvas,
tecendo estampas miúdas
nas casas abandonadas
que agora dormem no álbum
de retratos de minha rua.

Caminhando, com meus olhos
debruçados sobre a terra -
com palavras, bem quisera
descrever o que não há
de tão óbvio nessas flores,
mas que exala seus olores
sobre os meus passos atentos
ao meu próprio caminhar.

As pétalas estendidas,
em lilases e amarelos,
apontam para um caminho
inefável, pois singelo,
cujo nome não consigo,
na verdade, compreender.

Porém dentro do silêncio
que se faz nesta morada,
onde a luz do sol adentra
despida, sem conhecer
o que quer que seja sombra,
permaneço a contemplar
esse olhar que me consome,
inflamando os horizontes
e vestindo a minha rua
de um rubor crepuscular.








Ante a auréola dessas flores
calam-se as minhas palavras...
São teus lábios me sorrindo
a paisagem que diviso
ao mirar esse jardim
estendido em minha estrada.

Eu não sei que gozo sinto...
Sei que tudo em mim se move,
ajoelha-se, comove-se,
devolvendo-te os sorrisos
com que tu me acaricias...

Só penso que morreria,
se pudesse esboçar,
com o cinzel da poesia,
uma centelha deste amor
tão divino e delicado,
meu amado, em cujo peito
o meu canto principia.



Kalliane Amorim

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

De nós para nós


Uma freira perguntou certa vez ao então reverendo Francisco de Sales, que mais tarde seria canonizado, o que ele faria, se pertencesse à mesma ordem religiosa da freira, para se tornar perfeito, ao que ele respondeu:

“Minha cara filha, parece-me que, com a graça de Deus, eu me poria muito atento para praticar as pequenas e simples observâncias que são da regra desta casa. Guardaria bem o silêncio e, às vezes, também falaria... Falaria bem lentamente... Fecharia e abriria as portas muito lentamente... Caminharia lentamente, pois, minha cara filha, Deus e Seus anjos nos vigiam sempre e têm um amor extremo por aqueles que agem bem. Parece-me que eu seria muito feliz e nunca me apressaria... Na medida do meu possível, procuraria fazer o melhor para manter-me na presença de Deus e fazer todas as minhas ações por Seu amor”.

Leio e releio as palavras do santo, no intuito de fazê-las reverberar no mais íntimo de mim, acendendo aquele facho de luz tão necessário para alumiar o caminho e, assim, acertar onde e de que modo meus pés precisam pisar. Vejo, porém, que essa receita de perfeição contraria tudo o que o mundo nos apresenta como paradigma de vida e exige, portanto, a sã ousadia de contestar, de perder para ganhar, de ser estigmatizado de louco quando o que se está buscando é um pouco de lucidez e verdade. Mas não é essa exatamente a proposta do evangelho de Cristo, estar no mundo sem pertencer a ele?
Francisco diz que se “poria muito atento” na realização de tarefas pequenas e simples. Quem descobre a via da atenção no que é pequeno e simples, chega àquele ideal da fruição verdadeira dos momentos, do estar por completo, de corpo e alma, naquilo que se propõe a fazer, seja simplesmente servir um café a alguém, aguar as plantas no quintal de casa, arrumar a própria cama, tirar o prato da mesa, e toda a infinidade de ações que realizamos ao longo de cada dia. Fernando Pessoa, o poeta português, diria isso de outra forma, na voz de seu heterônimo Ricardo Reis:


Para ser grande, sê inteiro: nada
teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
no mínimo que fazes.
Assim, em cada lago, a lua toda
brilha, porque alta vive.


Ora, para chegar a tal nível de atenção, é necessário aquietarmos o espírito, o que só conseguimos à custa do sacrifício de aquietar os sentidos. Estamos cercados de ruídos de toda natureza. São propagandas incentivando o consumo desenfreado, são músicas frenéticas acelerando nossos passos e nossos batimentos cardíacos, são aplicativos por meio dos quais manifestamos nossas carências, exigindo dos outros uma disponibilidade doentia. E seguem nossos olhos, e mãos, e ouvidos, e língua, descentrados, desorientados, absorvendo um milhão de informações e adoecendo por não poder o hardware comportar tanto lixo.

Precisamos parar, fechar os sentidos ao bulício do mundo a fim de tentar apreciar um outro mundo, esse que carregamos conosco, esse que é único, e que, mesmo se transformando continuamente, necessita de verdades eternas sobre as quais possa se erguer.

Guardar o silêncio, falar lentamente, mover-se lentamente no mundo, nas relações com as pessoas... Parece algo tão distante de nós, agitados que somos tantas vezes, especialmente quando lidamos com o que não se submete a nosso controle, à nossa ilusão de controle, na verdade.

Seria um exercício proveitoso aprender com o poeta Manoel de Barros, que passava os dias quieto, no meio das coisas miúdas. Num de seus poemas, Aprendimentos, ensina:

Sócrates fez o seu caminho de cultura e ao fim
falou que só sabia que não sabia de nada.
Não tinha as certezas científicas. Mas que aprendera coisas
di-menor com a natureza. Aprendeu que as folhas
das árvores servem para nos ensinar a cair sem
alardes. Disse que fosse ele caracol vegetado
sobre pedras, ele iria gostar. Iria certamente
aprender o idioma que as rãs falam com as águas
e ia conversar com as rãs.
E gostasse mais de ensinar que a exuberância maior está nos insetos
do que nas paisagens. Seu rosto tinha um lado de
ave. Por isso ele podia conhecer todos os pássaros
do mundo pelo coração de seus cantos. Estudara
nos livros demais. Porém aprendia melhor no ver,
no ouvir, no pegar, no provar e no cheirar.
Chegou por vezes de alcançar o sotaque das origens.
Se admirava de como um grilo sozinho, um só pequeno
grilo, podia desmontar os silêncios de uma noite!
Eu vivi antigamente com Sócrates, Platão, Aristóteles —
esse pessoal.
Eles falavam nas aulas: Quem se aproxima das origens se renova.


Ouve... Não tenhas medo... São as mais doces ordens do Senhor a seu povo, nas Sagradas Escrituras. Deus deseja que usemos nossos sentidos para nos achegarmos a Ele, porque somos matéria, e só por meio da matéria é que experimentamos o que está para além dela. Deus é o poeta, e sua fala ressoa nos versos de Manoel: aprendemos melhor no ver, no ouvir, no pegar, no provar, no cheirar, no experimentar a presença daquele que, ocultando sua face, revela sempre a delicadeza de seu coração em todas as coisas. Não é uma tela plana e fria que vai substituir a contento tais vivências, não é...

Parece que seríamos muito felizes, e nunca nos apressaríamos, se nos decidíssemos, firmemente... E viveríamos na presença de Deus, e faríamos tudo em resposta ao seu amor, sem nos preocuparmos se o mundo passasse por nós com o rugido de seu motor ultraveloz, levantando a poeira atrás de si, tentando alcançar um horizonte sempre mais distante, enquanto nós, calmamente, caminharíamos, um passo após o outro, apreciando a paisagem, abaixando-nos para tratarmos com as pequenas criaturas de igual para igual, deslocados, talvez, porém muito convictos de estarmos na direção mais acertada: de nós para nós.


Kalliane Amorim

terça-feira, 14 de janeiro de 2020

Meu relicário poético

Em 2015, publiquei pela Sarau das Letras, dos amigos Clauder Arcanjo e David Leite, um livro de poemas intitulado Relicário. Embora pareça clichê, escolhi-o por razões muito pessoais, queria reunir num volume poemas que escrevi ao longo de um certo tempo, poemas sobre o próprio fazer poético, sobre memórias de infância, sobre pessoas e momentos, sobre a busca de Deus. Tudo isso consistia, para mim, em um tesouro íntimo. Como diria meu querido Rubem Alves, o poeta vê, mas não quer ver sozinho, quer apontar o dedo em direção a uma luz tênue que não deve ser ignorada.

Um amigo meu, também poeta, Felipe Garcia, lá das bandas do Seridó, leu meu Relicário e também quis apontar o dedo, mas a seu modo. Leu e escreveu sobre o livro, tem um tempinho já, mas não queria deixar de compartilhar e, desse modo, divulgar também meus escritos. Aí está o que ele viu na paisagem dos versos de Relicário. Boa leitura!

...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   


Alento de pedras, textura de vento: a poesia de K. Amorim


Quando leio um livro de poemas, quero me surpreender. Nunca me esquecerei do dia em que li Manuel Bandeira pela primeira vez. Eu revi o mundo. É assim que bons livros de poemas devem ser: nos fazer rever até mesmo o inesquecível.
Nós o carregamos como uma inolvidável relíquia na memória e, em versos, ela nos diz:

Não preciso de relógios:
o tempo já me tem dentro de mim
e imprime em meu corpo suas feições.

Os relógios são prisões da modernidade e Kalliane os desfaz como farelos ao tempo. São versos assim que atiçam nossos olhos e colocam em xeque a realidade das coisas, a densidade das formas, o silêncio da noite.
O que torna um poeta autêntico e inesquecível talvez seja um mistério violento e incorruptível, mas é impossível negar quando o reconhecemos sem mesmo sabermos o porquê. Sentimos, vemos, vivemos e voamos. A palavra carrega um farol, uma lua, uma vida. É assim que Kalliane Amorim se apresenta em sua obra: como um suspiro breve e único presente em cada palavra que (com)põe, sem dar espaço para mais.
Relicário, publicado em 2015 pela Editora Sarau das Letras,  é delicadeza e aridez, memória e poesia, força e leveza, são “as tantas mortes/ de que tanto nasço”, o caminho cujo todo escritor deve percorrer. Ali, nenhuma palavra é desperdiçada sem ser consumida pelo desejo ardente da poeta de viver – e fazer nascer sempre a palavra através da passagem tempo

Não sei por que vielas
anda-me a palavra agora.
Fugiu-me.
Mas longe e perto
seu segredo me enamora.

Esse ímpeto de vida e permanência permeia e habita sua obra como uma espécie de devir-eterno diante de toda superficialidade do mundo, da brevidade de tudo, da rigidez com que a pedra nos atinge fora e dentro do corpo. Esse alento que Kalliane oferta ao leitor é um dos bens mais preciosos de Relicário.
Terceiro livro de poemas de K. Amorim.
O seu canto não apenas alenta, mas alerta e nos convida a olharmos diferentemente as coisas, o ser-coisa, o ser-objeto. A poesia alenta pedras em um mundo feito para não durar, em uma humanidade programada para não sentir nem ser. O desafio maior da poesia, que Kalliane claramente abraça, é retornar o homem à criança – ou fazê-lo ver através da luz e é também, como ela diz, “o mirar do olhar alheio”.
O prisma redentor que percorre seus versos é a contramão poética para tudo o que está no mundo, é o caminho certeiro para o ser – se descobrir e redescobrir em uma jornada silenciosa que, ora é contada pelos sentidos, ora é narrada pelos poetas, “Escrever/ é ensaiar passos/ de fumaça/ sobre a luz”.
A poesia de Kalliane valoriza as formas regulares da poesia e consegue, em versos simples e sonoros, inscrever na alma do leitor mais hipócrita as lembranças que ela partilha com a palavra e a vida. Nos identificamos, porque podemos – como a poeta – brincar e nos ferir com sua palavra, os temas se transmutam e nem sempre correspondem às frágeis expectativas do leitor, algo que rompe nossa rigidez e nos desfaz de armadilhas

E à incógnita da vida,
carrossel solto no espaço,
deixaremos da invenção
de nossa voz os pedaços.

É um livro de aberturas de janelas, caixas de sapato, varais, de álbuns e de inventários. Tanto cuidado com cada verso acentua ainda mais sua capacidade para palavra múltipla, metafórica e metonímica. São nos detalhes (in)visíveis onde reside o objeto escondido que desejamos encontrar em um Relicário. Essa relíquia estará sempre no coração do leitor, como a caixa de ovelhas de O pequeno príncipe, e terá a forma que ele desejar.
Essa sutil capacidade camaleônica de transitar entre formas, cores, texturas e sentidos é herança de poesia que consagra o instante, inaugura o dia – com uma palavra que acalanta a dor. Kalliane Amorim dialoga com sua terra de uma maneira íntima, seus antepassados, com o cheiro e o suor dos habitantes simples, das coisas simples – e dos sentidos mais incomuns e inomináveis. Relacioná-la com outros poetas é mera redundância, uma vez que – aquele leitor de poesia mais perquiridor – vai perceber claramente que ela lê demasiadamente e suas influências não se sobrepõem ao seu estilo:

A palavra
que sou
encarnou-se
no mundo.

O primeiro poema do livro “Vestida de tempo” é a trama, a tessitura de seu livro-relíquia. Nele, a poeta se transfigura entre coisa e ser e se torna o que palavra poética consegue apurar com mais afinco em poesia. O tecido/corpo apresentado é atravessado pela navalha do tempo, imagem incisiva e intensa, que configura a poética de Relicário entre a memória e invenção, o fluxo intermitente entre o eu e o outro.
Explorar sua obra é, além de encontrar alento para pedras, sentir a textura do vento. O poema Varal, que transcrevo na íntegra abaixo, apresenta não só a poética da poeta, mas também sua trajetória, compondo com as palavras mais simples, as coisas mais corriqueiras, o essencial:

Varal

Escreva um verso,
pendure no varal
e deixe que o vento
ensine as palavras
a esvoaçar.

Um verso
que não se diz
é ouro
sem serventia:
não ilumina
o olhar do outro.

Um verso que não voa
de boca em boca
deixa o mundo
a cada dia
amordaçado.

Um verso
que não navega
em nossa amplidão
naufraga
sem vida
à beira
de nós.

Ler Kalliane é sair um pouco de casa à tardezinha ou pela manhã e ver como as coisas são reais, reconfortantes e repleta de sentidos, de nós e de palavras: é um poema em branco. Este é o seu ofício: pela palavra, reencontrar. O seu livro de poemas Relicário é o ar puro do olhar nítido do tempo sobre tudo.
É preciso (re)conhecê-la.

Nanobiografia: mãe, professora e mossoroense.


Felipe Garcia

...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   


Aos interessados em adquirir o livro, entrar em contato pelo e-mail kalliane.amorim@hotmail.com.

E a quem quiser conhecer mais sobre Felipe Garcia, cujo livro de poesias "Morrediço Mar" tive a honra de prefaciar,  acessar o endereço: opoetafelipegarcia.blogspot.com

Ribeira

Quando a Poesia e a Música se encontram, nasce a Beleza. E esta sempre é um caminho de encontro com Deus, se carrega consigo a Bondade e a V...