segunda-feira, 31 de julho de 2017

Sobre o encantamento da palavra em Mia Couto

Domingo desses, amanheci com uma mensagem linda de uma ex-aluna, leitora e amiga:

"Achei esse seu projeto tão lindo, tão inspirador [...], chega dá vontade de tomar uma partezinha do seu entusiasmo e de ler e escrever com o seu pensamento. Quando você fala das cartas de Kahlil e Mary, parece que me vejo diante dos poemas de Vicente Huidobro e Mario Benedetti. São tão lindos que dá vontade de espalhar para todo mundo ler."

É uma felicidade sem tamanho essa que a leitura nos proporciona de ir tecendo uma verdadeira rede, na qual cada fio simboliza uma história, um poema, um livro, que, entrançados a outros fios, vão se estendendo ao infinito. Compartilhar nossas leituras é um ato de amor: amamos as palavras e os mundos por ela criados, queremos que todos vejam a sintam a beleza, o impacto, a emoção, e todas as sensações suscitadas pela leitura. Queremos semear no outro uma parte de nós.

Como uma leitura puxa outra leitura que puxa outra leitura, a mensagem de Mikaelli, domingo de manhã, reportou-me ao ano de 2014, quando lecionava na turma do terceiro ano do curso de Biocombustíveis, da qual ela fazia parte. Estávamos estudando o gênero romance e, para não ficarmos apenas em teorias literárias, obviamente partimos para a leitura. A turma, organizada em pequenos grupos, foi envolvida em várias tarefas que compunham uma gincana literária: havia desfile de personagens, montagem de trilha sonora para as narrativas, entrevistas com autores, panfletagem, entre outras. As tarefas eram realizadas em datas previamente marcadas com os alunos, porém toda semana, num dia específico, cada grupo tinha que me entregar o seu diário de leituras coletivo. Era minha primeira experiência conduzindo atividades com diários – tenho pensado seriamente em torná-los virtuais, nas próximas vezes, mas isso é assunto para outra hora.

Resultado de imagem para mia couto um rio chamado tempoUm dos livros sugeridos foi o romance Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. O primeiro obstáculo era a inexistência da obra na biblioteca para que os alunos tivessem acesso. Embora hoje se leia em tudo quanto é suporte, ainda creio que o contato com um livro físico tem lá sua magia, seu encantamento, seu aconchego. Então, foi o jeito dizer aos alunos que sim, eles teriam que ler a história de Marianinho no computador ou no celular, em arquivo no formato PDF. E eles leram. Inicialmente, uma certa dificuldade, as invenções poéticas da prosa de Mia e mesmo o vocabulário típico do português moçambicano foram as pedrinhas no meio do caminho. Mas nada que a boa vontade e a curiosidade sobre o remetente das misteriosas cartas que o protagonista recebia não resolvessem.


A trama de Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra gira em torno da indefinível morte de Dito Mariano, a qual obriga seu neto Marianinho a retornar à ilha de Luar-do-Chão, local onde vivera sua infância e do qual tinha partido após a morte de sua mãe. Esse caminho de volta se constituirá, na trajetória de Marianinho, um retorno às suas raízes, ao seu povo, uma viagem para o interior de sua própria história de vida, tão cercada de segredos e verdades inventadas. Cada capítulo é antecedido de uma frase, um ditado, de alguma das personagens que povoam a narrativa. E logo nas primeiras linhas, a história contada pelo neto – o porta-voz dos Malilanes (ou Marianos, como ficou sendo chamada a família após a influência da língua portuguesa – lembremos que o contexto é a África lusitana) – deparamo-nos com passagens que já nos levam a profundas reflexões:

"A morte é como o umbigo: o quanto nela existe é a sua cicatriz, a lembrança de uma anterior existência. A bordo do barco que me leva à Ilha de Luar-do-Chão não é senão a morte que me vai ditando suas ordens. Por motivo de falecimento, abandono a cidade e faço a viagem: vou ao enterro de meu Avô Dito Mariano.
Cruzo o rio, é já quase noite. Vejo esse poente como o desbotar do último sol. A voz antiga do Avô parece dizer-me: depois deste poente não haverá mais dia. E o gesto gasto de Mariano aponta o horizonte: ali onde se afunda o astro é o mpela djambo, o umbigo celeste. A cicatriz tão longe de uma ferida tão dentro: a ausente permanência de quem morreu. No Avô Mariano confirmo: morto amado nunca mais para de morrer."

Imaginem receber a notícia de que um avô a quem muito se ama está morrendo. Estar morrendo e morrer, na fala do Tio Abstinêncio, são a mesma coisa. Marianinho se perturba com a visita inesperada de seu tio, que há anos não colocava o pé fora de casa. À medida que o barco avança em direção à ilha, o jovem tenta se convencer de que bem poderiam tê-lo deixado lá, na cidade, com suas ocupações de estudante universitário. Pensa no seu pai, Fulano Malta, ex-guerilheiro de alma sensível, com quem tinha uma relação complicada – dá para notar logo no começo da narrativa que os dois têm contas a acertar; pensa no tio Ultímio, o último dos filhos, envolvido na política e distante da família, ávido por riquezas e posição social; pensa no tio Abstinêncio, ali a seu lado, envergado dentro da própria escuridão – pele e roupa escura, fechado em si mesmo, só sairia de casa mesmo por motivo mais que importante, fatal. E assim foi. Mas foi contra a própria vontade, que a tradição mandava ser o filho mais velho a fazer as honras fúnebres do pai. A mando de Dito Mariano, que expressara muito antes este desejo, Abstinêncio vai à procura do sobrinho: ele quem deveria conduzir o funeral. A presença de Marianinho torna-se, então, um conflito naquela família: como pode ser o neto a plantar o avô (em Luar-do-Chão, não se diz enterrar, mas plantar o falecido), ainda mais um neto que estava distante da ilha e de toda a tradição?

Rondam esse retorno de Marianinho inúmeros mistérios: a tarja preta que não parava de crescer na roupa de tio Abstinêncio, a cega e meio vidente Miserinha que lança seu lenço de todas as cores no rio para proteger o rapaz, o gato que farejava as moças disponíveis e levou Dito, nos tempos de namoro, à sua Dulcineusa, as cartas que aparecem e desaparecem sem explicação, a terra que não se abre para receber o corpo de Mariano. A cada capítulo, as relações entre as personagens vão se imbricando mais e mais, o que dá ao romance ares de novela: o que vai acontecer nas próximas cenas? O que sabemos é que aquela Nyumba-Kaya – expressão que significa "casa-casa", escolhida para agradar aos familiares da parte sul e da parte norte da ilha (por aí já imaginamos os conflitos!) – guarda segredos os mais diversos. E é uma delícia ir lendo e desvendando-os pouco a pouco, junto às personagens maravilhosas criadas por Mia.

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O escritor moçambicano Mia Couto
Na primeira vez em que li o romance, tentei fazer o que tenho costume nas minhas leituras: destacar as passagens que mais dialogam com minhas vivências, que mais me chamam atenção pelas reflexões que suscitam ou pela beleza na escolha das palavras e nos sentidos que delas emergem. Percebi que seria quase uma tarefa inútil: a expressão poética, metafórica, das palavras de Mia, exala seus perfumes inebriantes em todas as páginas, de modo que não se pode dizer qual trecho é mais bonito, mais significativo, mais emblemático do tema de que ele trata na obra. 

Falar sobre a morte é sempre falar da vida e suas dores e alegrias. Assim, à medida que os mistérios vão sendo desvendados, percebemos o quanto a personagem central, Marianinho, vai crescendo em profundidade na sua relação com a avó, com os tios e tias, com o povo da ilha. Em vários momentos, nós, leitores, vamos nos identificando com as histórias dos Marianos, afinal família só muda mesmo de endereço. Não vou mencionar tudo que achei bonito nessa narrativa que já é um clássico no meu cânone particular, mas gostaria de compartilhar alguns trechos que, pelo menos para mim, são muito significativos:

"A grande casa está defronte a mim, desafiando-me como uma mulher. Uma vez mais, matrona e soberana, a Nyumba-Kaya se ergue de encontro ao tempo. Seus antigos fantasmas estão, agora, acrescentados pelo espírito do falecido Avô. E se confirma a verdade das palavras do velho Mariano: eu teria residências, sim, mas casa seria aquela, única, indisputável."

"[...] quem parte de um lugar tão pequeno, mesmo que volte, nunca retoma."

"O bom do caminho é haver volta. Para ida sem vinda basta o tempo."

"E explicava: dormir com alguém é a intimidade maior. Não é fazer amor. Dormir, isso é que é íntimo. Um homem dorme nos braços de mulher e a sua alma se transfere de vez. Nunca mais ele encontra suas interioridades."

"Lá fora, a vida desfilava, impávida. Injustiça é o mundo prosseguir assim mesmo quando desaparece quem mais amamos."

"A dor pede pudor. O sofrimento é uma nudez - não se mostra aos públicos."

"Infelizmente, os ilhéus eram tão pequenos que apenas queriam ser como os grandes."

"Miserinha exclama: como estamos doentes, todos nós! Era ela que estava vendo sombras? Ou seriam os demais que já nada enxergavam, doentes dessa cegueira que é deixarmos de sofrer pelos outros?"

"Os lugares não se encontram, constroem-se."

"A saudade é uma ferrugem, raspa-se e por baixo, onde acreditávamos limpar, estamos semeando nova ferrugem."

"Afinal, a maior aspiração do homem não é voar. É visitar o mundo dos mortos e regressar, vivo, ao território dos vivos."

Muitas outras temáticas vão permeando a narrativa de Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, desde questões políticas, como o processo de independência das colônias portuguesas na África, até questões sociais, como a condição da mulher na sociedade. Mas é a trama em redor das memórias de família e da morte como acontecimento que pode nos trazer de volta à vida, que vai tecendo o fio condutor da história de Marianinho e sua Luar-do-Chão. Uma linda reflexão sobre a casa como espaço de memória e a família como "lugar onde somos eternos".

Até a próxima!


Kalliane Amorim
P.S.: Mikaelli, venha compartilhar suas leituras de Vicente Huidobro e Mario Benedetti aqui no blog. Não é um pedido de amiga, é uma intimação de professora!

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