Filha de costureira, ficava horas ao pé da máquina de minha mãe, catando no chão os retalhos de tecido coloridos para fazer roupas de boneca. Linhas e mais linhas se entrelaçavam às minhas mãos e pernas – algodão fino, pesponto, seda... Fiapos de texturas diversas grudavam nas minhas roupas – linho, crepe, viscose, organza... Botões de inúmeras formas e cores, alguns transparentes, outros nacarados... Rendas e gripis, fivelas e miçangas, acessórios os mais variados para o acabamento das peças que minha mãe cortava e costurava horas a fio em sua máquina Singer, em cujo pedal seu pé direito marcava o ritmo da minha infância...
Cresci ouvindo o barulho dessa máquina no quartinho que ainda hoje está lá, do lado esquerdo da cozinha, como espaço exclusivo daquela que me deu à luz, dona Apolônia. Ela aprendeu o ofício muito jovem, com minha avó Eulira, na Camponesa, minha Pasárgada real dos tempos de menina. Aos doze anos de idade já sabia costurar, atividade que exerceu até bem pouco tempo, quando os discos de sua coluna teimaram em ficar na posição de zigue-zague definitivamente e não mais a deixaram fazer mágica com linhas e tecidos.
Cresci ouvindo o barulho dessa máquina no quartinho que ainda hoje está lá, do lado esquerdo da cozinha, como espaço exclusivo daquela que me deu à luz, dona Apolônia. Ela aprendeu o ofício muito jovem, com minha avó Eulira, na Camponesa, minha Pasárgada real dos tempos de menina. Aos doze anos de idade já sabia costurar, atividade que exerceu até bem pouco tempo, quando os discos de sua coluna teimaram em ficar na posição de zigue-zague definitivamente e não mais a deixaram fazer mágica com linhas e tecidos.
O vocabulário da costureira
impregnou-se em minha língua desde cedo. Mas mainha nunca quis que
aprendêssemos, eu e minha irmã, a costurar o que quer que fosse. Com muita
insistência, consegui aprender a enfiar linha na agulha e dar nó deslizando o
indicador no polegar, fazendo aquele pequenino tufo que ninguém consegue
desalinhar. Com mais impertinência, consegui aprender a pregar botão, a fazer
fuxico, a bordar em ponto-cruz – o que devo à minha prima Daiany – e a pintar
alguma coisa com tinta de tecido. Não mais do que isso. "Não quero que
vocês sejam costureiras, têm que estudar pra ser alguém na vida!", era o
discurso corrente lá em casa.
Assim o fizemos, pois quem é que
se atreve a desobedecer palavra de mãe? É desobedecer e tudo desandar, de
certeza! Estudamos, eu e minha irmã, cada uma seguindo seu caminho. Ela, entre
números e teorias administrativas. Eu, entre letras e teorias linguísticas e
literárias. Entre palavras e entre linhas. Entrelinhas.
Se muitas vezes ouvia que o
estudo poderia livrar o homem de trabalhos pesados, outras vezes me entristecia
por começar a entender que "lutar com palavras é a luta mais vã".
Eufemismo, pura e simplesmente. O que me entrava pelos ouvidos, na verdade, era
um duro e amargo "escrever é perda de tempo". Olhe que isso me
incomodou durante anos. Hoje, não mais, não tanto. Devo ter encontrado abrigo e
acalanto não só nos livros, que me vieram bem depois ensolarar os dias, mas nas
palavras que ouvi, ainda criança, de minha própria mãe, nas histórias que
contava, sendo ela e os familiares as personagens centrais, ou de meu próprio
pai, seu Dedé, nas canções que inventava, sendo eu a protagonista, em meio ao
batuque das suas mãos nas bacias, baldes e tachos sob a sombra da goiabeira, no
fundo do quintal.
Meus pais, em sua simplicidade,
em sua parca instrução, me levaram ao reino das palavras sem sentir. Quando
comecei a ler, lembro bem disso, adorava decorar passagens de livros, páginas
inteiras, e ler para eles. Seus olhos brilhavam, também os meus, era o orgulho
pela educação que me davam, com as promessas futuras de uma vida um pouco
melhor que a deles, naquela batalha diária e suada pelo sustento.
Não costurei retalhos de tecido,
porém até hoje teimo em emendar palavras, em procurar o acabamento mais bonito,
mais sonoro, a imagem que caia como um vestido sob medida: corte quem souber,
costure quem quiser – é um dos ditos de minha mãe. Com as palavras é a mesma
coisa: corte quem souber – escolha as palavras criteriosamente, porque escrever
é um sucessivo corte; costure quem quiser – depois de feita a escolha das
palavras, colocá-las no papel ou na tela é tarefa das mais fáceis.
Sou costureira, de palavras.
Tecelã, tramando diferentes urdiduras para aquilo que, penso eu, vai no final
ser um reflexo de mim mesma. Uma colcha de inúmeros e coloridos retalhos, das
mais diferentes texturas, que vou entrelaçando dia a dia, com o tempo me
servindo de linha. Nesse coser permanente, retalhos de outras vozes vão se
misturando aos meus, vozes fictícias e vozes reais, amigos de papel e amigos de
carne e osso que gostam de amigos de papel... Habitantes de outras paragens,
tão íntimos que parecem conhecidos de outras vidas... Habitantes de minha
vizinhança, não necessariamente geográfica, todavia de interesses, gente que
ama os livros e neles encontra abrigo, alegria, ponte para os mais diversos
mundos dentro de cada um...
Faz uns seis anos, alimentei a
ideia de manter um blog. Inicialmente, com textos meus, poemas, gênero em que
mais me encontro. Comecei. Parei. Depois, além de poemas, pensei em comentar
poemas de autores que eu gostava, numa espécie de ensaio despretensioso, que de
crítica literária não tenho nada. Sou muito mais amante dos livros do que
crítica deles. Comecei. Parei. Tentei insistir postando novamente poemas.
Recomecei. Parei de novo.
Até que um dia descobri os diários de leitura, primeiro lendo os livros sobre letramento literário de Rildo Cosson. Resolvi testar com meus alunos e fui, nessa experiência, me apaixonando pouco a pouco pelo gênero. Um diário, daqueles que fazíamos na adolescência, porém diferente em quase todos os sentidos, com exceção de ser um espaço para o relato de experiências pessoais. A intimidade com os caderninhos que recebia de meus alunos, repletos de desenhos e textos escritos à mão com canetas coloridas, dando destaque a trechos de livros que os emocionaram, me levou a utilizá-los como corpus de minha pesquisa de mestrado. A minha urdidura agora se fazia com fios de meus aprendizes: ensinamentos que, assim como uma lançadeira, vão e vêm, num diálogo constante, nunca um monólogo onde minha voz se sentisse soberana.
Durante a pesquisa, descobri os
escritos de Lejeune em O pacto
autobiográfico e me encantei com a escrita de si, nos variados gêneros de
cunho pessoal, como cartas e diários. O autor define o diário como uma série de vestígios datados que não é forçosamente quotidiana nem regular. O
diário é uma rede de tempo, de malhas mais ou menos cerradas...
Entre as tantas funções de um
diário, Lejeune destaca a conservação da memória, o conhecimento de si e a
prática da escrita. Ao escrever um diário, terei
um rastro atrás de mim, legível, como um navio cujo trajeto foi registrado no
livro de bordo... A superfície em que escrevo, seja o papel, tão íntimo e
acolhedor, seja a tela de um computador, com sua trama retilínea de megapixels
nas vagas virtuais, fará com que eu me olhe com certo distanciamento. Assim, o
diário se torna um espaço de análise, de
questionamento, um laboratório de introspecção. Por fim, um diário só pode
existir quando alguém que gosta de escrever se propõe a fazê-lo. Ao contarmos a
nós mesmos na escrita diarista, construímos um corpo simbólico que, ao contrário do corpo real, sobreviverá [...] O
diarista não tem a vaidade de se acreditar escritor, mas encontra em seus
escritos a doçura de existir nas palavras e a esperança de deixar um vestígio,
já que vive no coração humano o desejo permanente da eternidade.
Durante esse processo de pesquisa
e escrita de um trabalho acadêmico, pensei que não seria justo exigir de meus
alunos a escrita de um diário de leituras sem que eu nunca tivesse
experimentado conceber um. Seria o mesmo que lhes pedir para analisar um livro
que nunca li. A ideia de um diário meu começava a tomar corpo. No entanto, pensava eu, a graça de um diário
de leitura é o compartilhamento, é a possibilidade de outras pessoas lerem e,
quem sabe, se interessarem pelas mesmas leituras que mexeram comigo, que me
emocionaram de alguma forma. Quem lê, ama a leitura e ama ainda mais
compartilhá-la, ainda que o outro não compreenda o brilho nos olhos e a
empolgação que nos toma conta do corpo ao falarmos dos textos que amamos com
tanta devoção. Não adiantaria, assim, tomar notas num caderninho. Não me daria
por satisfeita.
Por isso, decidi, uma vez mais,
reiniciar minhas aventuras num blog, não mais para publicar somente meus poemas
nem para analisar obras. Decidi-me por construir o meu diário de leituras, que
pode até não se tornar tão diário assim, já que escrever por obrigação,
cotidianamente, não me parece algo atrativo – bom mesmo é escrever sem o senso
do dever. Estou certa, porém, que será contínuo esse espaço onde a conversa
sobre livros – e tudo que se relaciona a eles – se tornará o fio da meada, o
fio do carretel de linhas que vai costurar minhas experiências às de quem se
propuser a ler meus rabiscos envoltos de amor à leitura e à escrita.
Àqueles que vierem, boas-vindas!
Kalliane Amorim
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