"Achei esse seu projeto tão lindo, tão inspirador [...], chega dá
vontade de tomar uma partezinha do seu entusiasmo e de ler e escrever com o seu
pensamento. Quando você fala das cartas de Kahlil e Mary, parece que me vejo
diante dos poemas de Vicente Huidobro e Mario Benedetti. São tão lindos que dá
vontade de espalhar para todo mundo ler."
É uma felicidade sem tamanho essa
que a leitura nos proporciona de ir tecendo uma verdadeira rede, na qual cada
fio simboliza uma história, um poema, um livro, que, entrançados a outros fios,
vão se estendendo ao infinito. Compartilhar nossas leituras é um ato de amor:
amamos as palavras e os mundos por ela criados, queremos que todos vejam a
sintam a beleza, o impacto, a emoção, e todas as sensações suscitadas pela leitura.
Queremos semear no outro uma parte de nós.
Como uma leitura puxa outra
leitura que puxa outra leitura, a mensagem de Mikaelli, domingo de manhã,
reportou-me ao ano de 2014, quando lecionava na turma do terceiro ano do curso
de Biocombustíveis, da qual ela fazia parte. Estávamos estudando o gênero
romance e, para não ficarmos apenas em teorias literárias, obviamente partimos
para a leitura. A turma, organizada em pequenos grupos, foi envolvida em várias
tarefas que compunham uma gincana literária: havia desfile de personagens,
montagem de trilha sonora para as narrativas, entrevistas com autores,
panfletagem, entre outras. As tarefas eram realizadas em datas previamente
marcadas com os alunos, porém toda semana, num dia específico, cada grupo tinha
que me entregar o seu diário de leituras coletivo. Era minha primeira
experiência conduzindo atividades com diários – tenho pensado seriamente em
torná-los virtuais, nas próximas vezes, mas isso é assunto para outra hora.
Um dos livros sugeridos foi o
romance Um rio chamado tempo, uma casa
chamada terra. O primeiro obstáculo era a inexistência da obra na
biblioteca para que os alunos tivessem acesso. Embora hoje se leia em tudo
quanto é suporte, ainda creio que o contato com um livro físico tem lá sua
magia, seu encantamento, seu aconchego. Então, foi o jeito dizer aos alunos que
sim, eles teriam que ler a história de Marianinho no computador ou no celular,
em arquivo no formato PDF. E eles leram. Inicialmente, uma certa dificuldade,
as invenções poéticas da prosa de Mia e mesmo o vocabulário típico do português
moçambicano foram as pedrinhas no meio do caminho. Mas nada que a boa vontade e
a curiosidade sobre o remetente das misteriosas cartas que o protagonista
recebia não resolvessem.
A trama de Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra gira em torno da
indefinível morte de Dito Mariano, a qual obriga seu neto Marianinho a retornar
à ilha de Luar-do-Chão, local onde vivera sua infância e do qual tinha partido
após a morte de sua mãe. Esse caminho de volta se constituirá, na trajetória de
Marianinho, um retorno às suas raízes, ao seu povo, uma viagem para o interior
de sua própria história de vida, tão cercada de segredos e verdades inventadas.
Cada capítulo é antecedido de uma frase, um ditado, de alguma das personagens
que povoam a narrativa. E logo nas primeiras linhas, a história contada pelo
neto – o porta-voz dos Malilanes (ou Marianos, como ficou sendo chamada a
família após a influência da língua portuguesa – lembremos que o contexto é a
África lusitana) – deparamo-nos com passagens que já nos levam a profundas
reflexões:
"A morte é como o umbigo: o quanto nela existe é a sua cicatriz, a
lembrança de uma anterior existência. A bordo do barco que me leva à Ilha de
Luar-do-Chão não é senão a morte que me vai ditando suas ordens. Por motivo de
falecimento, abandono a cidade e faço a viagem: vou ao enterro de meu Avô Dito
Mariano.
Cruzo o rio, é já quase noite. Vejo esse poente como o desbotar do
último sol. A voz antiga do Avô parece dizer-me: depois deste poente não haverá
mais dia. E o gesto gasto de Mariano aponta o horizonte: ali onde se afunda o
astro é o mpela djambo, o umbigo celeste. A cicatriz tão longe de uma ferida
tão dentro: a ausente permanência de quem morreu. No Avô Mariano confirmo:
morto amado nunca mais para de morrer."
Imaginem receber a notícia de que
um avô a quem muito se ama está morrendo. Estar morrendo e morrer, na fala do
Tio Abstinêncio, são a mesma coisa. Marianinho se perturba com a visita
inesperada de seu tio, que há anos não colocava o pé fora de casa. À medida que
o barco avança em direção à ilha, o jovem tenta se convencer de que bem poderiam
tê-lo deixado lá, na cidade, com suas ocupações de estudante universitário. Pensa
no seu pai, Fulano Malta, ex-guerilheiro de alma sensível, com quem tinha uma
relação complicada – dá para notar logo no começo da narrativa que os dois têm
contas a acertar; pensa no tio Ultímio, o último dos filhos, envolvido na
política e distante da família, ávido por riquezas e posição social; pensa no
tio Abstinêncio, ali a seu lado, envergado dentro da própria escuridão – pele e
roupa escura, fechado em si mesmo, só sairia de casa mesmo por motivo mais que
importante, fatal. E assim foi. Mas foi contra a própria vontade, que a
tradição mandava ser o filho mais velho a fazer as honras fúnebres do pai. A
mando de Dito Mariano, que expressara muito antes este desejo, Abstinêncio vai
à procura do sobrinho: ele quem deveria conduzir o funeral. A presença de
Marianinho torna-se, então, um conflito naquela família: como pode ser o neto a
plantar o avô (em Luar-do-Chão, não se diz enterrar, mas plantar o falecido),
ainda mais um neto que estava distante da ilha e de toda a tradição?
Rondam esse retorno de Marianinho
inúmeros mistérios: a tarja preta que não parava de crescer na roupa de tio
Abstinêncio, a cega e meio vidente Miserinha que lança seu lenço de todas as
cores no rio para proteger o rapaz, o gato que farejava as moças disponíveis e
levou Dito, nos tempos de namoro, à sua Dulcineusa, as cartas que aparecem e
desaparecem sem explicação, a terra que não se abre para receber o corpo de
Mariano. A cada capítulo, as relações entre as personagens vão se imbricando
mais e mais, o que dá ao romance ares de novela: o que vai acontecer nas
próximas cenas? O que sabemos é que aquela Nyumba-Kaya – expressão que
significa "casa-casa", escolhida para agradar aos familiares da parte
sul e da parte norte da ilha (por aí já imaginamos os conflitos!) – guarda
segredos os mais diversos. E é uma delícia ir lendo e desvendando-os pouco a
pouco, junto às personagens maravilhosas criadas por Mia.
O escritor moçambicano Mia Couto |
Na primeira vez em que li o
romance, tentei fazer o que tenho costume nas minhas leituras: destacar as
passagens que mais dialogam com minhas vivências, que mais me chamam atenção
pelas reflexões que suscitam ou pela beleza na escolha das palavras e nos sentidos
que delas emergem. Percebi que seria quase uma tarefa inútil: a expressão
poética, metafórica, das palavras de Mia, exala seus perfumes inebriantes em
todas as páginas, de modo que não se pode dizer qual trecho é mais bonito, mais
significativo, mais emblemático do tema de que ele trata na obra.
Falar sobre a
morte é sempre falar da vida e suas dores e alegrias. Assim, à medida que os
mistérios vão sendo desvendados, percebemos o quanto a personagem central,
Marianinho, vai crescendo em profundidade na sua relação com a avó, com os tios
e tias, com o povo da ilha. Em vários momentos, nós, leitores, vamos nos
identificando com as histórias dos Marianos, afinal família só muda mesmo de
endereço. Não vou mencionar tudo que achei bonito nessa narrativa que já é um
clássico no meu cânone particular, mas gostaria de compartilhar alguns trechos
que, pelo menos para mim, são muito significativos:
"A grande casa está defronte a mim, desafiando-me como uma mulher.
Uma vez mais, matrona e soberana, a Nyumba-Kaya se ergue de encontro ao tempo.
Seus antigos fantasmas estão, agora, acrescentados pelo espírito do falecido
Avô. E se confirma a verdade das palavras do velho Mariano: eu teria residências,
sim, mas casa seria aquela, única, indisputável."
"[...] quem parte de um lugar tão pequeno, mesmo que volte, nunca
retoma."
"O bom do caminho é haver volta. Para ida sem vinda basta o tempo."
"E explicava: dormir com alguém é a intimidade maior. Não é fazer
amor. Dormir, isso é que é íntimo. Um homem dorme nos braços de mulher e a sua
alma se transfere de vez. Nunca mais ele encontra suas interioridades."
"Lá fora, a vida desfilava, impávida. Injustiça é o mundo
prosseguir assim mesmo quando desaparece quem mais amamos."
"A dor pede pudor. O sofrimento é uma nudez - não se mostra aos públicos."
"Infelizmente, os ilhéus eram tão pequenos que apenas queriam ser
como os grandes."
"Miserinha exclama: como estamos doentes, todos nós! Era ela que
estava vendo sombras? Ou seriam os demais que já nada enxergavam, doentes dessa
cegueira que é deixarmos de sofrer pelos outros?"
"Os lugares não se encontram, constroem-se."
"A saudade é uma ferrugem, raspa-se e por baixo, onde
acreditávamos limpar, estamos semeando nova ferrugem."
"Afinal, a maior aspiração do homem não é voar. É visitar o mundo
dos mortos e regressar, vivo, ao território dos vivos."
Muitas outras temáticas vão
permeando a narrativa de Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, desde
questões políticas, como o processo de independência das colônias portuguesas
na África, até questões sociais, como a condição da mulher na sociedade. Mas é
a trama em redor das memórias de família e da morte como acontecimento que pode
nos trazer de volta à vida, que vai tecendo o fio condutor da história de
Marianinho e sua Luar-do-Chão. Uma linda reflexão sobre a casa como espaço de
memória e a família como "lugar onde somos eternos".
Até a próxima!
P.S.: Mikaelli, venha
compartilhar suas leituras de Vicente Huidobro e Mario Benedetti aqui no blog.
Não é um pedido de amiga, é uma intimação de professora!