sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Sobre pastores na poesia


Aproveitando o convite de meu amigo Clauder para colaborar com o espaço Jornalista Martins de Vasconcelos, no Jornal De Fato, compartilho com vocês o texto que escrevi para a edição de 27 de setembro - depois de um período de férias justas e merecidas! Boa leitura!

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Nas aulas de literatura com meus alunos de Ensino Médio, insisto na compreensão de que não importa tanto o que se diz, mas sim a maneira como se diz o que se diz. Ao enfatizar isso, não faço outra coisa senão repetir, bakhtinianamente falando, o discurso de muitos que me antecederam. Na linguagem, tudo é velho e novo ao mesmo tempo: retomamos as falas, literalmente ou não, das pessoas com quem conversamos, dos livros que lemos, das histórias anônimas que ouvimos ao longo da vida, porém, a cada momento, tudo isso que já foi dito se reveste da novidade do instante, do exato momento em que tornamos concreto o nosso pensamento, por meio da palavra.

Em se tratando do discurso literário, como dizer parece ser a essência que define a qualidade do texto, uma vez que a escolha de uma determinada palavra, a posição desta no enunciado, a sua carga semântica e sua sonoridade contribuem para fazer emergir a beleza estética, diante da qual os leitores podem vivenciar até mesmo experiências epifânicas. Quantas vezes ao pousar os olhos nas páginas de escrita literária não nos emocionamos e encontramos a nós mesmos, como se quem escreveu aquilo ali estivesse desnudando nossa alma aos nossos próprios olhos?

Além dessa necessidade de enfatizar a forma do texto, é muito pertinente que possamos realizar uma leitura mais profunda, estabelecendo as ligações entre os discursos e os textos, num movimento dialógico que revela a dinâmica da linguagem. O que alguém diz no passado não fica lá, estático, congelado, engessado. Pode reviver de outras maneiras no que um outro alguém diz no presente. Para ilustrar um pouco dessa dinâmica, escolhi tratar de uma figura constante na poesia lírica: o pastor.

As Sagradas Escrituras, que começaram a ser registradas por volta de 1250 a.C - levemos em conta que as narrativas orais já vinham se estendendo por muitos séculos antes de serem escritas - já apontam para a figura do pastor no próprio Gênesis, quando apresentam a figura de Abel, que era pastor, diferentemente de Caim, que era agricultor, primeiros exemplos de relação do homem com Deus após a expulsão de Adão e Eva do paraíso. Ainda no mesmo livro, Deus aparece a Abrão e lhe ordena a sair da cidade de Ur, na região da Mesopotâmia, em direção a uma terra desconhecida. Ele obedece ao Senhor num ato que eu diria de extrema coragem e confiança em Deus, uma vez que naquela região todos os povos eram politeístas. Sai Abrão com sua esposa e seus familiares, montando acampamentos ao longo do caminho. Porém, quando enfrentam uma seca e começam a passar fome, descem ao Egito, e lá o faraó o presenteia com vários animais, entre os quais estão ovelhas. Isaac, seu filho, se torna pai de Esaú, o caçador, e Jacó, o 
Resultado de imagem para jesus o bom pastorpastor, que vai aumentar consideravelmente o rebanho do que viria a se tornar o povo de Deus, os israelitas, descendentes de Jacó.
O pastoreio era uma atividade típica desse povo, aos pastores cabia cuidar do rebanho, reconhecer as ovelhas uma por uma, evitar sua dispersão nos campos, desenvolver uma linguagem própria para se comunicar com elas e dar a sua vida para salvá-las, uma vez que constituíam um bem precioso para o patrão. A carga simbólica da figura do pastor é tamanha, que no livro dos Salmos é associada a Deus - o Senhor é o meu pastor (Sl 23) -, e nos Evangelhos, a Cristo - eu sou o bom pastor, conheço as minhas ovelhas e as minhas ovelhas conhecem a mim (Jo 10).

Trazendo essa imagem para a construção do texto poético, em diferentes épocas, diferentes autores compuseram poemas, de cunho religioso ou não, agregando novos sentidos àqueles já existentes. A poesia mística de São João da Cruz, que viveu na Espanha renascentista, está repleta de construções metafóricas, numa simbologia que o fez subir ao posto de maior poeta lírico de língua espanhola. São dele os seguintes versos com referências à figura do pastor, intitulados “Canções ao Divino Cristo e à Alma”:


Um Pastorinho, só, está penando,
Privado de prazer e de contento,
Posto na pastorinha o pensamento,
Seu peito de amor ferido, pranteando.


Não chora por tê-lo o amor chagado,
Que não lhe dói o ver-se assim dorido,
Embora o coração esteja ferido,
Mas chora por pensar que é olvidado.


Que só o pensar que está esquecido
Por sua bela pastora, é dor tamanha,
Que se deixa maltratar em terra estranha,
Seu peito por amor muito dolorido.


E disse o Pastorinho: Ai, desditado!
De quem de meu amor se faz ausente
E não quer gozar de mim presente!
Seu peito por amor tão magoado!


Passado tempo em árvore subido
Ali seus belos braços alargou
E preso a eles o Pastor se ficou,
E seu peito por amor muito dolorido!


O título dado ao poema é a chave de sua interpretação, pois delimita o campo semântico para a compreensão dos versos. Neles, percebemos a queixa do Pastorinho, que é Cristo, ao se sentir esquecido por sua pastora, a alma. São João da Cruz faz um resumo do que foi o sacrifício da cruz, expresso na última estrofe do poema, pelo fato de haver sido olvidado daquela por quem dá a sua vida, a alma humana.

Imagem relacionadaNa literatura moderna, a professora e escritora Cecília Meireles também se valeu da imagem do pastor para compor seu poema “Destino”, no livro Viagem (Nova Fronteira, 2001), sua primeira grande obra poética. Nesse poema, a autora contrapõe os pastores da terra, isto é, as pessoas apegadas à própria existência e repletas de certezas sobre a vida, à pastora de nuvens, que seria ela mesma, aquela que, diante da efemeridade da vida e da criação, só pode viver mesmo nesse universo suspenso, metafísico, território do espírito. Dele, transcrevo as seguintes estrofes:


Pastora de nuvens, por muito que espere,
não há quem me explique meu vário rebanho.
Perdida atrás dele na planície aérea,
não sei se o conduzo, não sei se o acompanho.


(Pastores da terra, que saltais abismos,
nunca entendereis a minha condição.
Pensai que há firmezas, pensai que há limites.
Eu, não.)


Cecília, em sua poesia intrinsecamente aérea e evanescente - em relação às imagens que refletem sua própria alma, dada à espiritualidade -, propõe uma pausa para pensarmos sobre o tipo de pastoreio que estamos exercendo na vida: pastoreamos somente o que é matéria ou cuidamos em pastorear, também, e nessa mesma matéria, o que é expressão do espírito?

Anchella Monte, poetisa cearense de nascença e potiguar de vivência, fazendo uma espécie de contradiscurso em relação ao poema de Cecília, traz a nós essa pequenina joia, “Pastoreio”, em seu livro Temas roubados (Sebo Vermelho, 2006):


Não sou pastora nem fui
Mas pastoreio meus sonhos
Não deixo que andem alto
Não quero que sigam longe.


Não sou pastora nem fui
Mas a mim me pastoreio
Pois quero fugir de mim
A imagem pode conter: 1 pessoaE me perder eu receio.


Não sou pastora nem fui
Mas pastoreio meus passos
Da loucura ando perto
À loucura dou os braços.


Não sou pastora nem fui
Mas assim melhor eu vejo
Cada sonho e cada fato
Mais revelam meu desejo.


Não sou pastora nem fui
E pastoreio assim mesmo
Sei que arriscado seria
Realizar o meu desejo.


Não sou pastora nem fui
Meu sonho é meu pesadelo
Deixar de sonhar não posso
Também não posso vivê-lo.


Não sou pastora nem fui
Mas pastoreio escondida
Não posso abrigar o lobo
Pelo qual me acho perdida.


Nesse poema, as contradições da alma humana e a necessidade de uma observação mais atenta de si mesma pelo eu lírico marcadamente feminino são as temáticas mais explícitas. Para quem conhece o poema de Cecília, o diálogo se estabelece claramente: se lá a tensão se dá entre matéria e espírito, aqui, a tensão acontece entre o desejo e a interdição.

Nos três textos selecionados, vemos não apenas a preocupação com a forma - todos os autores se preocuparam com as questões formais próprias da linguagem poética, como métrica e rima -, mas também com a mensagem a ser construída a partir dessa figura do pastor, como aquele que cuida de um rebanho muito particular: a alma, a vida e os desejos. Possamos nós, enquanto leitores, adentrar mais no âmbito simbólico da linguagem poética, a fim de compreendermos, também, a nós mesmos.



Kalliane Amorim

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