sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Sobre o mundo maravilhoso de Marina Colasanti

E nessa conversa sobre coisas que só amantes de livros fazem, como eu já suspeitara, esqueci-me de mencionar que todo amante de livros faz de tudo para ver de perto os autores que ama, falar com eles, dar-lhes um abraço, quando isso é possível, e tirar uma foto para guardar de lembrança, além de garantir aquela dedicatória que fará parte de seu arquivo de afetos e poderá, depois, se tornar até mesmo uma relíquia. Isso tudo, claro, quando os escritores ainda não se tenham transformado completamente em livros. 

Em agosto de 2015, empreendi uma autêntica odisseia de Mossoró à praia de Pipa, no litoral sul do Rio Grande do Norte, para ver de perto uma de minhas escritoras favoritas: Marina Colasanti. A história começou no mês anterior, quando um aluno meu, sabendo de minha admiração pela escrita imaginativa e poética dessa mulher, enviou-me o link da programação da Flipipa, a Feira Literária de Pipa, que já deve estar indo para o seu oitavo ano de realização. Seria numa sexta-feira, às oito horas da noite, o bate-papo literário com ela, na tenda dos autores. 

Imediatamente cuidei em arquitetar um jeito de ir, mas não sozinha; tinha que, obviamente, conclamar outros amantes de livros para ir também, além de pensar em toda a logística que envolveria a viagem, já que meu filho estava com dois aninhos de idade apenas, e eu não poderia levá-lo, precisava contar com o companheirismo e a compreensão do papai, que, felizmente, entende bem esse meu lado fanático por literatura e é um paizão pra todas as horas. Lembrei de meu amigo Davi, outro admirador da obra de Marina, e o convidei. Ele passou a mensagem para Janaína e Cleide, que entraram em contato com Flávia e Meire. Era a caravana dos letrados: todos das Letras, egressos da UERN. Mas, tal qual a história, éramos seis. Passamos para cinco, porque Davi desistira de nos acompanhar - Marina Colasanti veio, ano passado, a Natal, e Davi perdeu de novo a oportunidade de vê-la, o que me faz desconfiar de seu título de amante de livros! Enfim, a amiga Janaína, que é uma agenciadora de viagens das melhores, cuidou em reservar pousada e nos passar os horários e valores das passagens.

Às sete horas da manhã do dia 7 de agosto, estávamos as quatro - Cleide, Flávia, Meire e eu, porque Janaína já estava na cidade do sol, esperando por nós - indo em direção a Natal, no ônibus da Nordeste. Ali começava a nossa odisseia. A viagem duraria quatro horas. Duraria, não fossem as paradas constantes e o fluxo pesado à entrada da capital. Chegamos ao meio-dia, uma hora de atraso, e o ônibus que iria para Pipa já havia saído da plataforma quando lá chegamos. Resultado: esperamos mais uma hora até que outro ônibus chegasse. Quando me falavam que Pipa ficava perto de Natal, eu pensava: bom, acredito que em uma hora dê para chegar. Uma hora, só se a pessoa for em transporte próprio, não fizer paradas e tiver a sorte de não pegar um trânsito daqueles de permitir contemplar a paisagem, fazer unhas e maquiagem, e ficar lendo os dez capítulos restantes do romance iniciado dois meses antes! 

A essa altura, já estávamos há cerca de oito horas viajando. Eu pensava: é por uma causa justa e nobre, não é todo dia que podemos ver Marina Colasanti... Cleide, ao meu lado a viagem inteira, já olhava meio desesperançada pela janela do ônibus, que parava constantemente nas pequenas estações entre Natal e Pipa, nas quais às vezes aparecem meninos vendendo amendoim, castanha, pipoca, gelé, água mineral e o mais que a imaginação permite ou a necessidade obriga. Eu só tinha vontade de rir da impaciência dela, reclamando que a viagem não tinha fim, mas o respeito à aflição alheia me impedia de emitir qualquer gracejo.



Bem-aventurados os amantes de livros, que fazem de tudo
para ir ao encontro de seus escritores favoritos!
Às cinco da tarde, finalmente, chegamos à Pipa. O ônibus parou na pracinha à entrada da vila, descemos e nos demos conta de que tínhamos que enfrentar a pé uma ladeira com nossas malas até chegarmos à pousada e tomarmos um merecido banho. Assim o fizemos. Saímos para jantar, sabendo que não podíamos nos demorar, já que teríamos que subir a ladeira para chegar ao local onde estava acontecendo a Feira.

Sabe quando você está vivendo um momento de felicidade e se esquece de todas as dificuldades que passou a fim de vivenciar ao extremo aquele instante? Pois foi isso o que aconteceu quando, estando na primeira fila, vi Marina entrar naquela sala, com seu cabelo ruivo, preso num pequeno coque com uma fita azul escura combinando com a faixa de seu vestido, um sorriso largo e uns olhinhos incandescentes, e aquela voz suave que se espalhava sobre a plateia, confirmando sua alegria em estar cercada de professores para falar de algo que lhe era tão caro: literatura.

Ela contou histórias de sua infância, respondeu a perguntas de algumas professoras sobre o incentivo à leitura e o maravilhoso dentro de sua obra, confessou as dificuldades que teve quando se deparou com uma filha que não gostava de ler tanto quanto ela - até descobrir, em meio a uma crise de hepatite, as confissões de Christianne F. e só então se apaixonar pelos livros - e terminou sua fala contando-nos (não lendo, contando mesmo!) uma das tantas estórias que ela criou, inserindo os elementos do maravilhoso para falar de realidades mais profundas do ser humano. Nem precisa dizer de meu encantamento diante daquela mulher, e mais ainda ao vê-la contar de cor um conto inteiro, sem tirar nem pôr uma palavra sequer! O conto se chama Como uma carta de amor e intitula o livro que apresenta mais 12 estórias criadas por ela, a partir de sua sensibilidade aguçada em observar o mundo e as pessoas à sua volta. No vídeo abaixo, ela fala de onde lhe veio inspiração para escrevê-lo.





Naquela noite, depois de falar por cerca de uma hora, ela se dirigiu ao stand para autografar e tirar foto com todos que ali estavam porque a amavam, sem qualquer vaidade ou orgulho que a fizesse se sentir superior aos outros, o que aumentou a minha admiração. Antes, porém, de sair da sala, Marina chamou ao palco aqueles que quisessem fazer um registro fotográfico. Eu fui toda contente e só me lembrava do dia em que, diante de Rubem Alves, eu fiquei quase sem fala (até hoje Júnior me aperreia com essa história, dizendo que fiquei igual a cachorro que corre atrás de caminhão: quando o veículo para o cachorro fica sem saber o que fazer!). Graças a Deus, não foi o que aconteceu. Falei com Marina, disse-lhe de minha admiração, contei-lhe do trabalho com os diários de leitura - que mais tarde me renderiam uma dissertação de mestrado -, dei-lhe de presente um exemplar de meu Relicário e ainda tirei foto com ela. Foi uma noite memorável. 

Com a escritora Marina Colasanti
(nem dá para notar a alegria, não é?)

Na fila dos autógrafos, quando chegou minha vez, ela fez questão de escrever uma dedicatória especial para o meu filho num dos livros infanto-juvenis que eu havia adquirido momentos antes da palestra - quando Vinícius crescer mais um pouquinho, vou contar a ele toda essa história e ler o livro com ele, além, claro, de lhe mostrar a dedicatória carinhosa que ela fez. Cleide havia ficado com meu celular para tirar fotos, mas tenho a impressão de que ela estava tão emocionada que quase todas ficaram tremidas. No fim, o saldo foi positivo: conheci Marina, andei nas ruazinhas de Pipa, vi o mar de longe e voltei para casa cheia de livros. A volta, como sempre, foi bem mais rápida do que a ida. E não foi só a sensação, não. O táxi que nos levou para a rodoviária não fazia paradinhas, e o ônibus que pegamos para Mossoró também não.

Bom, depois de contar essa viagem fabulosa para ver Marina Colasanti, vou contar como entrei em contato com a literatura dela.

Eu estava cursando o primeiro ano do Ensino Médio, na Escola Estadual Abel Coelho, e no livro de Língua Portuguesa havia um pequeno conto intitulado Para que ninguém a quisesse, o qual abordava a submissão e o apagamento da identidade feminina, no âmbito do casamento. Foi, que eu me lembre, o primeiro texto de Marina que li. E já me chamava a atenção, naquela época, o fato de a personagem não ter nome próprio e ir, aos poucos, abrindo mão de si mesma a ponto de a narrativa mencionar que a mulher ficara "mimetizada com os móveis". No entanto, o conto, extraído do livro Contos de amor rasgados (tenho um exemplar que Davi me deu de presente há algum tempo e rio agora me lembrando que, nas últimas vezes em que nos falamos, ele me confessou que sonhara que estávamos comendo pastéis de carne de sol preparados pela escritora!!! Gente, vou precisar fazer um rodapé para minhas digressões, mas não podia, agora, deixar de mencionar esse sonho, porque falar em livros sempre me faz puxar uma memória atrás da outra!) - como eu ia dizendo, o conto não apresenta ainda elementos do maravilhoso, como vocês podem conferir abaixo.


Para que ninguém a quisesse

Porque os homens olhavam demais para a sua mulher, mandou que descesse a bainha dos vestidos e parasse de se pintar. Apesar disso, sua beleza chamava a atenção, e ele foi obrigado a exigir que eliminasse os decotes, jogasse fora os sapatos de saltos altos. Dos armários tirou as roupas de seda, da gaveta tirou todas as jóias. E vendo que, ainda assim, um ou outro olhar viril se acendia à passagem dela, pegou a tesoura e tosquiou-lhe os longos cabelos.
Agora podia viver descansado. Ninguém a olhava duas vezes, homem nenhum se interessava por ela. Esquiva como um gato, não mais atravessava praças. E evitava sair.
Tão esquiva se fez, que ele foi deixando de ocupar-se dela, permitindo que fluísse em silêncio pelos cômodos, mimetizada com os móveis e as sombras.
Uma fina saudade, porém, começou a alinhavar-se em seus dias. Não saudade da mulher. Mas do desejo inflamado que tivera por ela.
 
Então lhe trouxe um batom. No outro dia um corte de seda. À noite tirou do bolso uma rosa de cetim para enfeitar-lhe o que restava dos cabelos.
 
Mas ela tinha desaprendido a gostar dessas coisas, nem pensava mais em lhe agradar. Largou o tecido em uma gaveta, esqueceu o batom. E continuou andando pela casa de vestido de chita, enquanto a rosa desbotava sobre a cômoda.

COLASANTI, Marina. “Para que ninguém a quisesse”.
In: Contos de amor rasgados. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. P. 111-2.

Muito tempo depois, já licenciada em Letras e trabalhando com alunos de Ensino Médio, descobri o conto A moça tecelã e, nele, os elementos próprios das narrativas maravilhosas: a linguagem simbólica, metafórica, a ausência de nomes das personagens, a recorrência de tempos e espaços geralmente antigos, mas sem uma precisão de épocas, a abordagem de temáticas que dizem respeito ao universo interior do ser humano e, exatamente por isso, a possibilidade de se dirigirem esses contos a um público muito amplo. O vídeo abaixo apresenta esse conto, na interpretação da contadora Ailén Roberto:




A grande sacada dos contos maravilhosos, a meu ver, é a sua plurissignificação, decorrente das características já mencionadas. Não devemos, claro, pensar que os contos maravilhosos se reduzam aos já conhecidos contos de fadas. Não é necessariamente a presença de fadas, bruxas e encantamentos que faz um conto ser qualificado como maravilhoso, mas a atitude da personagem diante daquilo que, num outro contexto, poderia soar como estranho ou impossível. Assim, andar sobre fios de cabelo nas ondas do mar, ouvir uma cegonha falar, dar vida a um arbusto de rosas, ver poderes num pente de cabelo, são coisas normais para as personagens desse tipo de contos, porque ali, naquela realidade inventada, tudo é possível. 

Resultado de imagem para o conto de fadas nelly coelhoA gênese desses contos é muito mais antiga do que imaginamos. No livro O conto de fadas: símbolos - mitos - arquétipos, Nelly Coelho traz uma série de informações sobre as origens dessas narrativas cheias de magia. Versões ancestrais de estórias conhecidas nossas aparecem nas culturas egípcia e chinesa, por exemplo, e foi graças a muitos monges copistas e folcloristas que elas chegaram até nós. E como quem conta um conto aumenta um ponto, muitos foram os pontos acrescidos nessa trama simbólica. O livro de Nelly é leitura essencial para quem quer se aprofundar na temática, porque tanto apresenta um panorama geral dos contos ditos maravilhosos, como também traz a visão da psicanálise sobre as narrativas, desconstruindo a noção de que esse tipo de literatura não é para adultos. Muito pelo contrário, essas estórias revelam nosso mundo interior, ou melhor, aquilo que em nosso mundo interior escondemos ou não conseguimos acessar senão por meio das imagens e figuras despertas pela inventividade dos escritores.

Em Como uma carta de amor, há um conto intitulado Um presente no ninho, no qual a temática do caráter humano, especialmente as noções de egoísmo e altruísmo, emerge na figura de um casal destoante: ele, egocêntrico e azedo, tinha os olhos igualmente azedos para tudo que o cercava; ela, solícita e paciente, tinha os olhos igualmente doces para tudo que sua alma tocava, inclusive para ele, porque há sempre alguém que ama quem não sabe amar. Até que um dia uma cegonha aparece e bate-lhes a porta de casa para fazer um convite em troca da hospitalidade do casal em permitir que ela se acercasse da chaminé: Me ofereço para levar um de vocês para conhecer as terras d'África. Mas um só, porque não aguentaria atravessar o mar com o peso dos dois nas costas. Para o outro, deixarei um presente no ninho.

O marido, afirmando que presente é coisa de mulher, oferece-se rapidamente para a viagem. A mulher que fique em casa, chocando o ovo que a cegonha lhe destinara como regalo. E a mulher, que não gerara filhos, olhou o ovo com ternura, olhou ao redor e, não encontrando solução melhor, acomodou-se com cuidado em cima dele. Assumiu para si essa tarefa até que a casca se rompeu. Lá dentro, solitário, cintilava um diamante.

Quando leio as estórias de Marina Colasanti, fico muito tempo imaginando sua capacidade criativa e sua profundidade de observação e conhecimento. Como ela mesma sempre gosta de enfatizar, não escreve aleatoriamente, cada livro é um projeto no qual ela se lança sem receios nem enfados: lê, pesquisa, observa, guarda ideias e memórias, até que a obra nasça. Mas é muito genial sacar da manga, como se fosse uma ilusionista, essas imagens tão carregadas de sentidos que fazem de seus contos verdadeiros biscoitos finos ao paladar dos leitores. Nenhuma palavra é desperdiçada, tudo fica amarrado e tem sua devida importância no contexto.

Mas, prosseguindo, esse conto traz a simbologia da cegonha e do ovo como imagens da vida, a vida que ansiava por brotar do coração daquela mulher que não tivera filhos. Na sequência, o marido volta da viagem, tostado, a roupa estragada, tivera que esmolar nas ruas, trabalhar para os outros por um prato de comida, humilhar-se. Tal não foi sua surpresa ao reparar melhor na mulher e na casa, e perceber que tudo estava mais bonito. A mulher explica: do ovo nascera um diamante, cuja venda rendera-lhe muitos dividendos, permitindo que tudo por ali melhorasse. Mas a inveja, a inveja que dá movimentos demais aos olhos, como diria Ricardo Reis, percorreu o corpo inteiro daquele homem, que no verão seguinte candidatou-se a permanecer em casa para chocar o novo ovo da cegonha e deixar, sim, que sua mulher fosse viajar por aí com a ave dos ovos de diamante.

E o conto, curtinho, termina assim:

Ela estava justamente navegando no Nilo com seus novos amigos, na tarde em que ele sentiu debaixo de si um leve estalar, um estremecer, e levantou-se ávido. A rachadura da casca avançava, abria-se em cacos a branca curva. Viu um cintilar lá dentro, meteu a mão. A picada foi instantânea. No ovo enfim desfeito brilharam os olhos da serpente que, coleando, abandonou o ninho.

Em outras palavras, a gente só recebe aquilo que dá. É a velha lei do retorno. E o interessante é a imprevisibilidade dos desfechos que Marina dá às suas estórias. A mulher do conto queria muito ter tido filhos, mas não é do ovo da cegonha que eles vêm, como seria de se esperar. Aquela mulher jamais poderia ter filhos com um marido que só pensava em si e não se esforçava em dar de si aos outros. O amor e a dedicação dela não puderam ser direcionados a uma vida saída de seu ventre, mas foram destinados aos amigos que conseguiu conquistar nas terras distantes para onde a cegonha a levara. 

Espero que tenham gostado e se interessem em descobrir mais de Marina Colasanti. Ainda faltam muitos livros dela para eu ler, mas vez por outra saio navegando na web, leio uma estória ou outra, perscruto os poemas da autora também, que são belíssimos, e assim vou alimentando esse hábito que me dá tanta alegria.

Até a próxima!



Kalliane Amorim






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